As cinzas dos heróis
2005/06/18LAMPEDUSA Na prisão da fortaleza
2005/07/01A presidência americana da Europa
Diário de Notícias, Opinião
Rei morto, rei posto quarta-feira, o Parlamento Europeu levantou-se para aclamar Jean Claude Juncker. O presidente em exercício da União Europeia tinha acabado de colocar Tony Blair no banco dos réus, revelando, para lá de toda a diplomacia, os meandros da negociação falhada sobre as Perspectivas Financeiras da União para 2007/2013.
24 horas mais tarde, o mesmíssimo Parlamento aplaudiria longamente Tony Blair. Depois de este ter insistido em todas as suas anteriores posições… Em Bruxelas, abriu a época de saldos para as espinhas dorsais.
O fim de uma era
A crise fez as primeiras vítimas. Em primeiro lugar, Durão Barroso. No combate de chefes desapareceu do mapa. Pateticamente, concentrou-se sobre o menor dos problemas actuais – um acordo rápido sobre as Perspectivas Financeiras. Enquanto Blair falava de política – a dele, claro – Barroso batia-se pela mercearia. O presidente da Comissão ainda vive na “Europa como era dantes”.
A segunda vítima é o Partido Socialista Europeu. O duplo aplauso a Juncker e Blair foi socialista. O seu chefe de bancada foi o único a insistir num Tratado que já só existe na sua cabeça. E foi também o único a descobrir na intervenção de Blair a vontade de compromisso sobre as directivas mais liberais que estão em carteira.
Na eurolândia, o establishment ainda não percebeu que o tempo dos acordos mínimos entre governos acabou. Esse foi o regime em que direita e socialistas se entenderam sobre políticas de liberalismo mais ou menos temperado. Mas isso foi chão que deu uvas. Morreu a 29 de Maio.
O “não” francês iluminou o vazio de liderança, a desorientação e o esgotamento de uma Europa sem projecto. Foi sobre esse vazio que Blair jogou. Primeiro, bloqueando acordos no Conselho. Depois, surgindo em Bruxelas como o timoneiro que quer evitar o naufrágio da nau.
A via americana para a Europa
Blair jogou na clareza. Colocou a Europa na cadeira onde 24 horas antes o tentaram sentar no banco dos réus. Expôs uma visão sem concessões. Chamou-lhe “modernização do modelo social europeu”. E traduziu o que ela significa: “europeização” dos sucessos britânicos na desregulamentação do trabalho.
A agenda de Blair é a do liberalismo hardcore imposição, sem delongas, das directivas de liberalização dos serviços e prolongamento “asiático” dos horários de trabalho. Em face da globalização “realmente existente”, o que propõe é que a Europa assuma, sem tibiezas, as regras laborais que vigoram nos Estados Unidos da América e nos tigres asiáticos.
Barroso e Juncker não estão distantes desta perspectiva. Mas receavam afrontar de peito aberto as razões maiores do “não” francês. A sua “pausa” era um recuo temporário para contornar a tempestade. E a insistência nas Perspectivas Financeiras o gesto que salvava as aparências e permitia à Europa continuar a funcionar como até aqui.
Blair não rompe com a escolha que levou a Europa à crise o social-liberalismo. Interpreta, isso sim, a evidência da crise, e propõe um remédio draconiano. “Insisto na reforma económica porque a Europa ainda não percebeu que esta é a urgência”, insistiu uma e outra e outra vez. Em compensação, dispensa definitivamente o Tratado que as urnas derrotaram: “se acertarmos na política, chegaremos a um Tratado”. E sobre as Perspectivas Financeiras procede a um jogo que lhe interessa: concentrando-se sobre a distribuição dos recursos existentes, evita o debate sobre a sua escassez… Blair, como Juncker ou Barroso, desejam uma Europa barata. A diferença é que o primeiro-ministro britânico desvia o debate da mercearia em nome da política pura e dura, à americana.
Europeísmo popular de esquerda
Blair merece uma resposta à altura. É essa a discussão que se trava em Paris no momento em que escrevo, entre representantes de movimentos e partidos de esquerda de toda a Europa. A vitória do “não”, de per si, não regula qualquer problema. Cria, isso sim, uma extraordinária oportunidade. Porque fez emergir um novo protagonista na construção europeia – o povo; deu dimensão popular relevante ao “europeísmo de esquerda”; e gerou a onda de choque que acordou as pessoas para a realidade de uma crise larvar na Europa, que já vinha de longe. Os seis meses de Blair não a podem resolver porque a sua plataforma é, em si mesma, um programa de crise. Eis o que obriga a Europa dos movimentos à iniciativa; e à superação da velha “cultura de resistência” em nome de um projecto europeísta de fasquia alta. A luta por uma nova Carta Europeia, na base de um processo constituinte democrático, entrou na ordem do dia.