A presidência americana da Europa
2005/06/24Armadilha letal
2005/07/09LAMPEDUSA Na prisão da fortaleza
Onze deputados da Esquerda Unitária deslocaram-se a Lampedusa, onde Itália tem o primeiro dos seus “centros de acolhimento” para imigrantes ilegais. Este é o relato da visita a um campo de concentração na Europa do século XXI.
Rodeiam-nos em círculos cada vez mais estreitos. Há sempre alguém que fala francês, arranha o inglês ou se desenrasca em alemão. São quase todos jovens. Prematuros atirados para a vida adulta no fio da navalha.
Formam-se círculos. Onde chega um deputado, forma-se um pequeno ajuntamento. Num deles, a advogada que nos acompanha retira um papel e pede a alguém que nele escreva o nome e nacionalidade declaradas. Em seguida dá-lhe um número de telefone. O círculo estreita-se imediatamente. Mãos frenéticas descobrem naquele papel meio amarrotado o seu passaporte para a vida. Impossível conter a ansiedade. Algumas folhas rasgam-se, disputadas por mãos concorrentes. “Há para todos!”, alguém diz. Mas não adianta. O círculo da advogada continua a crescer. Visto de cima, deve parecer anárquico. Visto de onde estamos, é danado.
Fazemos o que podemos. Alguns dos deputados do GUE/NGL pegam em papéis e afastam-se do círculo onde a esperança se distribui em formato A4. Mas logo outros se formam. As canetas não chegam. São apenas as nossas. Os cigarros também se esgotam. Árabes, aquelas 197 almas estão habituadas a fumar como chaminés. Aqui têm direito a 5 cigarros por dia. O meu bloco de notas regista outras regalias: uma carta telefónica de 5 euros por cada dez dias; 1 litro de água diária por cada dois; 1 litro de leite por cada seis; e um brioche pela manhã e macarrão ao almoço e ao jantar.
Os duches são de água do mar, que outra não existe ali. E a farmácia que trata das equimoses e problemas de pele, só tem “burro”, ou seja manteiga de cacau, para oferecer. Quanto a abcessos, pés inchados e maleitas várias, Allah que trate.
Novecentos onde cabem duzentos
A maioria está ali, nas traseiras do aeroporto de Lampedusa, há mais de um mês. O campo tem quatro camaratas pré-fabricadas, cada uma com 40 a 50 camas com lençóis esfarrapados. São as únicas sombras do lugar. Sombras metálicas, que suportam temperaturas de 40 graus…
O lugar tem nome: “centro de acolhimento”. É uma piada de mau gosto, claro. Não há, sequer, refeitório. Para comerem, os “hóspedes” sentam-se no chão, junto às grades do portão, com toalhas protegendo as cabeças da impiedade do Sol. Líderes informais garantem a disciplina possível naquelas circunstâncias. Uma semana no centro equivale a um certificado de antiguidade.
Não há que fazer nem para onde ir. Exíguo, o campo é inteiramente murado e rematado a arame farpado. Numa das extremidades, um pedaço de chão tem lajes de pedra lisa. É o lugar de oração, explica um dos responsáveis. “Decerto por tolerância e respeito, meu filho da puta”, estive para comentar. Mas não disse. Não saiu. O humor negro não cola ao lugar. “Aquilo” é a pior e a mais precária das prisões que vi. Precisão: é um campo temporário de concentração.
Os deputados visitaram-no num “dia bom”. Cinco dias antes, o campo tinha mais de 900 pessoas. Cinco vezes a lotação máxima admitida. Fosse por causa da visita, fosse porque esta é a regra em Lampedusa, os excedentes foram sucessivamente transferidos para outros campos em Itália. Ou recambiados para a Líbia. “Quantos foram para a Líbia, senhor director?”, pergunta um de nós às autoridades que nos receberam. “Não sabemos. Não sabemos para onde vão os transferidos. Terão de perguntar ao Ministro do Interior”. É mentira. Entre as centenas de transferidos, tínhamos informação de boa fonte que pelo menos 45 foram recolocados na Líbia. Aí, são colocados noutros campos, enquanto aguardam repatriamento para o Sudão ou para o Tchade. Uma nova odisseia. 800 quilómetros de Via Ápia, pela estrada dos sudaneses, atravessando o Sahara em condições de transporte que não é difícil imaginar. Impróprias até para gado.
“Nós também somos africanos”
Ao silêncio dos responsáveis, responde o protesto dos maghrebinos do campo. “Porque é que os negros são melhor tratados do que nós?”, pergunta o primeiro com quem falámos. “Porque é que eles não ficam aqui mais de dois ou três dias e nós estamos cá há mais de um mês?”, acusa outro. “Nós também somos africanos. Mas só os negros têm o direito de ficar na Sicília, na Europa, com cigarros e trabalho”, acrescenta um terceiro. É tramado. Aquela gente pensa que os sudaneses e tchadianos são privilegiados e que os italianos praticam o racismo contra os árabes.
Como falar verdade sem decepar as esperanças ou alimentar falsas ilusões? Um garante ter diploma de Matemáticas. Outro diz que era mecânico no seu país e que quer “ajudar a Europa”. A partir de certo momento, as conversas misturam-se e sobrepõem-se. Cada um tem a sua história, e pouco interessa o grão de verdade que contenha. São fragmentos e farrapos de uma só história. A história de quem parte, sabendo que arrisca a sua vida no mar; que se salvar, o mais provável é acabar onde agora se encontra, em Lampedusa. Porque tentam, apesar de saberem? Porque há sempre alguém que alcança. Porque, tomada a decisão, não se olha mais para trás. Porque fintar o destino, ousar, é mais do que sobreviver.
Mesmo ali, sentindo na pele como a Europa os trata, continuam a acreditar. Um cresceu na Alemanha. Fala alemão fluente. O seu pai, líder religioso da comunidade imigrante, reenviou-o para Marrocos. “Regressas para estudar e depois voltas”, disse-lhe. Ele tentou. Tentou de barco, depois de terem falhado as soluções legais. Tenta-se sempre. Outro confessa ter sido o único sobrevivente de um barco com 27 tripulantes. O resto foi engolido pelo Mediterrâneo. Ele salvou-se “porque Allah é Grande e Misericordioso e assim o quis”. Protegido por deus, só pode acreditar. A Europa é sua Atlântida, o lugar que na Terra mais se assemelha ao paraíso. Mesmo ali, em Lampedusa, é assim que pensa. Como não, se Allah o salvou e trouxe até à primeira ilha da Europa, à antecâmara da Promessa?
Como dizer-lhes que os chefes desse lugar de sonho não os querem? Não os querem a eles, aos maghrebinos, nem aos sudaneses e aos tchadianos? Que estes, longe do privilégio, nem a 30 dias de “acolhimento europeu” têm direito? Que partem dali antes deles, porque as autoridades do campo não podem arriscar um estado de permanente sobrelotação do campo, sem esperarem que uma tragédia revele ao mundo a ignomínia da sua própria desumanidade? Como dizer-lhes que os maghrebinos são, entre os que chegam, seleccionados para aguardarem em Lampedusa com antecipada guia de marcha para os seus países de origem? Que são eles, e não outros, que aí aguardam porque a ilha fica abaixo do paralelo 36, à vista de Monastir, na Tunísia? Mesmo à mão para repatriamentos ao abrigo dos “acordos operacionais” que a Europa fez com as chancelarias dos países do Maghreb?
O círculo infernal da mentira
Isso eles pressentem. Uma semana antes, representantes da Marrocos estiveram no campo. Pressionando para que os marroquinos reconhecessem a sua nacionalidade. Debalde. Todos os que ali estão, de pele branca, são palestinianos ou iraquianos. Os seus nomes são igualmente singulares: Moahmed Salim, Abdu Ramallah, Youssif Ramadan e por aí adiante…
Todos mentem. O preço da ousadia é a mentira. Antes de embarcarem, livram-se de qualquer documento que tenham. E os traficantes esvaziam os seus bolsos das últimas notas. Todos sabem que a identidade e a nacionalidade são a última coisa que podem revelar se forem apanhados.
No campo são submetidos a identificação primária. Com recurso a intérpretes de árabe, a polícia procede à primeira despistagem. Não é difícil perceber quem mente porque todos mentem. As origens detectam-se nos sotaques. Mas a polícia age a preceito. Umas quantas perguntas geográfico-culturais sobre os lugares da nacionalidade declarada, chegam para detectar contradições e confirmar o que já se sabe. Mas como não há modo de verificar a verdadeira identidade, o entrevistado acaba por assinar a sua detenção provisória em italiano, devidamente comprovada por um Juiz de Paz e rubricada com nome falso. A validade legal de tudo isto é obviamente nula, mas que importa? A Europa prova assim que respeita os direitos humanos e a Itália que é um Estado de Direito…
Em Lampedusa, a Europa transforma a coragem em delinquência. 60 dias depois da chegada aqueles homens serão repatriados para a Tunísia, para a Argélia ou para Marrocos. As autoridades desses países, já fora da Europa, procedem à identificação definitiva. Perguntámos aos carcereiros se tinham conhecimento de algum “erro de entrega”. Olharam uns para os outros e alguém teve, finalmente, a gentileza da verdade: “em Maio creio que recebemos um caso de volta”…