Menos que revolução e mais que viragem
2005/03/05A Comissão, a directiva e o Tratado
2005/03/19Quando os tontos falam do que não conhecem
Diário de Notícias, Opinião
Estrasburgo, 8 de Março de 2005: enquanto um milhão de libaneses – em quatro milhões de habitantes – se manifesta em Beirute respondendo a uma convocatória do Hezbollah, o Parlamento Europeu debatia uma resolução sobre os acontecimentos. A posição europeia ainda tinha alguma prudência. Alinhava pela Resolução 1559 do Conselho de Segurança das Nações Unidas – que exige o abandono imediato e total das forças sírias para as fronteiras do seu país – mas evitava “massacrar” Damasco ou incluir o Partido de Deus na lista das organizações terroristas. Mas a direita parlamentar, alinhada pela posição israelo-americana, insistiu e conquistou os liberais para ela.
Dois dias mais tarde, amarrava também os socialistas a um texto onde se insta a Síria à abstenção de qualquer ingerência nos assuntos do Líbano (como se fosse só ela…) e se exigia (uma vez mais, só ela…) que cessasse o seu apoio “às actividades do Hezbollah e demais organizações terroristas”. E com esta formulação se deu o passo para uma futura inclusão dos fundamentalistas na lista antiterrorista.
A esquerda do PE, que apresentara uma resolução própria, clara no apoio ao movimento que exige a plena soberania do Líbano, mas igualmente responsável na recusa de diabolizar a Síria e o Hezbollah, encontrou-se, no fim dos votos, ante o dilema de avalizar uma má resolução – para não ser acusada de dar cobertura ao Hezbollah – ou ter a coragem de contrariar um texto que cola a Europa à ofensiva norte-americana na região. Escolhi a segunda opção. Com falsas acusações, posso bem; com quem, irresponsavelmente, quer lançar o Líbano na sua segunda guerra civil, é que não estou seguramente.
A política no mundo árabe raramente é o que parece. E no Líbano muito menos. Por isso aqui seguem umas notas adicionais de viagem às hipocrisias da política internacional.
Beirute, 20 de Fevereiro de 2002: o início da invasão do Iraque está por dias. Na capital do Líbano, milhares de pessoas ouvem o líder do Hezbollah provocar os dirigentes árabes “Não permitam que os franceses sejam mais árabes que nós!” Ele referia-se à posição francesa ante a guerra anunciada. Passaram dois anos e, agora, uma viagem de G. W. Bush ao Velho Continente. Os dois lados do Atlântico fizeram as pazes e o Líbano fez parte do acerto – é o prémio outorgado a Chirac, em compensação do alinhamento de Paris contra Damasco.
Ironias no exacto momento em que as tropas da coligação internacional, há 15 anos, livravam o Koweit dos tanques de Saddam, os EUA cobriam os acordos de Taeff, que punham termo à guerra civil consagrando a tutela militar síria sobre o Líbano. A entrada de Damasco na coligação dos libertadores selava-se com uma ocupação…
Mudanças, portanto. Mas Beirute deve estar exactamente como a vi, há dois anos. Esburacada ao longo da sua avenida central, autêntico museu das feridas de uma guerra civil onde todos lutaram contra todos; elegante na marginal, em tributo à cultura ocidental que por ali passou; e confusa, pobre e paupérrima, consoante se penetre no interior da cidade sunita, xiita ou palestiniana, e por esta exacta ordem.
No meio, esventrado, está o centro da cidade, onde o primeiro-ministro assassinado, Rafic Hariri, aplicou em imobiliário de luxo a inesgotabilidade dos seus recursos financeiros, um dia adquiridos à sombra da asa protectora do então príncipe saudita, Fahd Abdel el- -Aziz. Até aqui tudo normal. Sucede que, além de rico entre os ricos, Hariri era primeiro-ministro e usou os meios do frágil Estado libanês para beneficiar a megalomania de uma reconstrução privada. Entre 92 e 96, conseguiu, aliás, a proeza de sextuplicar a dívida pública do país sem que um só pobre, por causa disso, tivesse deixado de o ser…
Tudo na mesma? Não. Os cedros ocuparam as ruas. Drusos e cristãos maronitas aproveitaram a circunstância do crime para lançar um movimento pacífico pela restituição da soberania ao país. Irmãos inimigos, demitiram o Governo sem banho de sangue. O Hezbollah esperou para exibir, não as armas, mas a sua força. Sábio, não exige nem “um homem, um voto”, nem o poder absoluto que o jogo democrático lhe daria. Contentou-se em demonstrar porque deve tudo voltar aos acordos interconfessionais…
Colocar o Partido de Deus na lista antiterrorista é encostar os pobres à parede e lançar o país na fogueira da guerra e de nova intervenção “salvífica”. Não seria mais sensato exigir à França e aos EUA que façam exactamente o que reclamam da Síria?…