A Europa dos plebeus
2005/06/01As cinzas dos heróis
2005/06/18Crise, evidência e esgotamento
Diário de Notícias, Opinião
Há um ano, as eleições europeias ganhavam o prémio da abstenção e o Parlamento Europeu, devido aos deputados dos novos países, acentuava a sua deriva para a direita.
Um mês depois, a escolha de Durão Barroso anunciava uma Comissão Europeia de baixo perfil. Fosse porque não existisse outro, fosse porque os principais governos desejavam uma Comissão fraca, a eurocracia de Bruxelas, outrora todo-poderosa, perdia outra vez a partida. Em tempos de crise, mandam os principais governos e ponto final.
A anterior assinatura do Tratado Constitucional, longe de contrariar esta linha de fundo, tinha-a selado. Para conter os efeitos de sucessivos alargamentos a novos países, as grandes chancelarias desenharam um sistema onde elas e o Banco Central Europeu detivessem todas as alavancas decisivas do poder. Neste arranjo, o Reino Unido fixou os limites e aos mais federalistas entregou-se a cereja do bolo – o novo Tratado seria uma Constituição…
Há quem hoje se arrependa amargamente da ousadia voluntarista. Mas há um ano, ninguém, entre as elites, antecipava as más notícias. Os segredos e artes do poder em Bruxelas não eram assunto que interessasse ao povo. Para o cidadão comum, o Parlamento Europeu era um centro de reformas doiradas e a distinção entre Comissão e Conselho, uma preciosidade “lá deles”. Esse mesmo cidadão até sabia que era nesse “lá” que o essencial se decidia. Mas preferia haver-se com o seu governo, que estava “mais à mão”.
Em Portugal, como a Leste, essa leitura era e é ainda mais enviesada: “Europa” é o lugar onde primeiro ministro que cá esteja vai buscar o dinheiro de que precisamos.
Este o quadro em que a ratificação do Tratado se apresentava como um passeio. Por falta de comparência do povo ou anestesia dos parlamentos nacionais… O que falhou? Falhou o povo. O povo não se comportou “como devia”. Decidiu, ó horror, deixar de ser a variável de ajustamento das políticas liberais.
A surpresa não estava escrita nos astros. Mas adivinhava-se no modo como os eleitores vinham punindo os governos da crise. Depois de Espanha, o ciclo de derrotas eleitorais só teve excepção em Inglaterra e mesmo aí se confirmou a tendência. Por outro lado, as resistências sociais aumentaram significativamente nos países centrais, proporcionais à gravidade de um conjunto de directivas em carteira.
Os referendos – que não condenam os eleitores à alternância – introduziram a dimensão europeia que faltava neste protesto. Chumbando as políticas da década de Maastricht, franceses e holandeses transformaram num pesadelo os referendos que as elites desejavam como plebiscito à sua própria legitimidade.
Na última sessão parlamentar de Estrasburgo aconteceu o inevitável: cada cabeça sua sentença. Os que, durante anos, bradaram no deserto contra a arrogância e a indiferença social das lideranças, pareciam ter acordado noutro planeta. No parlamento, a crise revelou-se em toda a sua crueza: nem Comissão nem Conselho têm asas para voar. A presidência luxemburguesa ainda resumiu filosoficamente a coisa: “esta Europa não é capaz de fazer sonhar”. Mas o drama é bem mais rasteiro: não tem líderes à altura da prova.
Eles não sabem o que fazer ao voto de França e da Holanda. E no entanto, é a isso que têm de responder no Conselho Europeu da próxima semana.
Em primeiro lugar, o destino do Tratado: cancelá-lo para evitar ulteriores pronunciamentos populares e se salvarem as aparências; ou dar combate até ao fim, na secreta esperança de que o rolo compressor dos poderes salve o Tratado domesticando as opiniões públicas? À boa maneira desta Europa de mínimos, ainda acabam a optar pelo mal e pela caramunha – suspendem as ratificações, mas quem quiser que as continue… Se deixarem esta aberta, o espectáculo vai ser hilariante. Ainda veremos governos explicando aos respectivos povos porque se deve ratificar um Tratado que, tal como se encontra redigido, nunca entrará em vigor…
O Conselho tem ainda que se pronunciar sobre as Perspectivas Financeiras da União para 2007/2013. O dossier já de si era escaldante. Mas sob o impacto do protesto nas urnas, tornou-se dramático. Sucede que, para desgraça dos que decidem, a gama das possibilidades de acordo apenas ilumina como se esgotou o projecto liberal europeu.
Os governos precisavam de dizer aos europeus que a União é um projecto de construção solidária. Mas o que têm para oferecer são orçamentos entre 1,04 e 1,05 por cento da riqueza produzida na Europa. Não irão além disso. E, pior, explicarão aos povos que este acordo prova como a Europa está viva e bem de saúde.