Operação ‘Pânico e terror’
2005/07/16Pelo buraco da agulha
2005/08/27Sem estados de graça
Diário de Notícias, Opinião
Acredito que o ministro estivesse esgotado. E que a família lhe tivesse dito: “eles não te merecem. Vê lá é se nos ligas”. Também percebo o primeiro-ministro. Dizem os jornais que nem pestanejou quando a demissão lhe caiu na secretária.
Imagino-o num momento de descanso, o malfadado telemóvel a tocar, o plasma a anunciar Campos Cunha e ele a pensar “aí vêm más notícias, quando este me liga, é sempre a mesma coisa”. Deve ter sido assim várias vezes ao dia. Todos os dias, santos incluídos. Quando o adeus lhe chega à secretária, José Sócrates respirou. As más notícias continuarão a chegar de telemóvel. Mas muda a voz do mensageiro. Já não há estados de graça.
Nos dias que correm, os ministros das finanças evitam que os outros gastem. Se alguém vende amanhãs que cantam, a convicção do contabilista esvai-se. E a família fala mais alto. O governo transformou-se num cemitério de vocações. Metade dos ministros devem ser assaltados, logo de manhã, pela mais filosófica das questões: “mas o que é que eu estou a fazer aqui? Não me pagam para isto…” Campos e Cunha foi o primeiro. Não será o último.
Feito o elogio do sacrifício, ocorre-me que só se é ministro quando se pode e quando se quer.
Com um desempregado é diferente. Esse conseguiu um dia arranjar emprego. O patrão prometeu-lhe segurança. Ele aceitou e trabalhou mais do que as horas devidas. Porque o salário é curto, porque os putos de hoje saem caros, porque a família acreditou na Europa e investiu a crédito, e porque a mulher, que também trabalha, é a ministra das finanças domésticas e garante que os contados não chegam. Lá em casa, “ligar à família”, é viver para pagar as contas. Um dia acabou-se. Sem ele saber bem porquê, acabou-se. Não teve a sorte de se poder despedir. Despediram-no. E a mulher, a ministra das finanças, não pôde fazer o que fez Campos Cunha, embora lhe apetecesse.
Entendo a vida de ministro. Mas compreendo mil vezes melhor o sofrimento dos que não têm liberdade de escolha.
Entretanto, a direita decidiu que o índio bom é o índio morto. Campos Cunha lixou-se porque era “técnico”. Porque, com carradas de ingenuidade, procurava impedir o milenar despesismo socialista. Claro que Campos Cunha tem razão quando escreve que nem todo o investimento é bom. Mas a direita tem tanta autoridade para falar de despesismo quanto os socialistas. Estava Marques Mendes em bicos de pés exigindo do PS o que nunca o PSD teve coragem para fazer, e ali ao lado, no Município de Lisboa, já Santana Lopes e Carmona Rodrigues disponibilizavam a CML para cobrir metade do orçamento do extinto Ballet Gulbenkian… Definitivamente, os liberais portugueses são a cadeira onde se sentam. Pois. Lembro-me dos estádios do euro 2004 e do “grande consenso nacional” em redor. Que disseram então os que agora criticam o TGV e a Ota? Que me lembre, só “estatistas radicais” e alguns comentadores puseram o dedo na ferida…
Estes dois investimentos podem ter estado na origem da demissão. Se é o caso, que esclareçam. Por mim, a ligação Madrid/Lisboa vale mil estádios de futebol. Mas já não entendo a vantagem da ligação Lisboa/Porto em alta velocidade, quando é possível concluir os investimentos feitos na solução dos pendulares. Como não me repugna uma Ota que seja complementar da Portela. Diminui o investimento previsto e não hipoteca futuras estratégias de substituição. O que é extraordinário nesta polémica de Verão, é que o caldo de cultura passou a ser “investimento igual a pecado”. Salazar ressuscitou. Quem, senão ele, reduziu a política a um “exercício técnico” de submissão ao equilíbrio das contas públicas que, aliás, só episodicamente alcançou?
A direita é pilha galinhas. Há 130 dias, Campos Cunha era uma “solução de recurso”. Agora, “recurso” é o senhor que se segue… Há um mês, ele destruía a economia com o aumento dos impostos, exactamente o que Durão Barroso começou por fazer mal ganhou as eleições. E desde há uma semana, foi promovido a herói porque queria mais cortes na despesa, precisamente o que a direita não fez em 3 anos de governo, apesar das ordens da Bruxelas.
Portugal tem sido dirigido por génios “anti-despesistas”. Só espanta como o resultado é o que se vê. De certeza que a culpa é do país. O consenso liberal do défice zero é que não é deste filme. Isso é “uma questão técnica” sobre a qual existe consenso político…