A geopolítica do cinismo
2005/10/01A face da “divina inspiração”
2005/10/08Para cá e para lá da concertina
Diário de Notícias, Opinião
O Mário Pereira saiu de Bissau em 2004. Com o 11º ano de escolaridade e a vontade de ser jornalista. É alto e elegante, e fala um português impecável. Decidiu partir após a morte de sua mãe. Ela era a única razão que o retinha na terra onde nascera. Tentou a imigração legal para Portugal e para Espanha, mas recebeu em troca o silêncio. Mas de um amigo em Madrid, recebeu o incentivo para a viagem. “Vem”. E ele foi. Ele e quatro amigos. Com trocos no bolso, uma mão cheia de vontade, e a certeza de que ao longo da viagem usariam os braços para trabalhar.
O périplo durou dois anos. Primeiro o Senegal, depois o Mali e a Líbia. Trabalharam sempre o suficiente para as custas da viagem seguinte. 150 euros aqui, 200 ali, 50 acolá. Não parece muito, mas é imenso para africanos. Um deles ficou pelo caminho. Morreu. Do meu bloco de notas apagou-se o nome e o lugar da ocorrência. Mas foi antes de Mário Pereira ter trabalhado como agricultor nas terras férteis dos arredores de Tripoli. Este foi o derradeiro compasso de espera, antes da travessia da Argélia. Em Maragaia, o grupo sentiu o cheiro do destino. Nesta cidade fronteiriça, existe “um governo” que, a 50 euros, garante passagem para Oujda, já em Marrocos. Daí a Melilla, é um pequeno passo.
Conheci o Mário Pereira numa das tendas do centro de acolhimento temporário de imigrantes, em Melilla. Chegou lá a 20 de Setembro e ainda não desesperou de Madrid. Tem, aliás, uma estranha fé: a de que o seu pedido será aceite pelas autoridades; que em Madrid vai trabalhar para pagar a conclusão dos estudos; e que, finalmente, se dedicará às notícias. Por ora, é ele a notícia. Dei-lhe o nome que tem. O nome que se merece numa história de homens e mulheres sem nome e sem papéis.
No campo, ele os amigos estão bem. Podem ir à cidade quando querem, desde que regressem até ao anoitecer. O centro tem arruamento, pátios, árvores, serviço médico, campo de basket, e até uma escola para crianças. Não é um hotel de cinco estrelas, mas é digno, decente. Porque a antiguidade é um posto, os mais antigos têm dormitórios, e os mais recentes, tendas de campanha. O problema é de sobrelotação. Com capacidade para 400, abriga agora 1300. Apesar disso, o Mário encontra-se no melhor dos lugares da sua viagem inacabada.
Ele não sabe, mas um dia sairá dali para um centro de detenção na Península ibérica. Vai pensar que se aproxima de Madrid, que chegou mesmo à Europa. Mas nesse novo centro, já não poderá sair durante as horas de sol. O seu processo será deferido em 40 dias. Ele não é refugiado, nem fugitivo de guerra. Não pode obter direito de asilo. É imigrante económico de um país com o qual Espanha não tem acordos de repatriamento. Por isso também não será colocado num avião de retorno a casa. Vai receber apenas uma ordem de expulsão do centro. Na rua, passará anos sem papéis e proibido de trabalhar, a não ser para empresários sem escrúpulos. Ele não sabe que esse vai é o prémio que a “Europa dos valores” lhe reserva. Mas por ora, está bem.
Até teve sorte. Do grupo inicial de cinco, sobram apenas três. O quarto desapareceu na tentativa de salto da última fronteira, a de Melilla. É uma muralha dupla de arame farpado, de concertina. A primeira, de três metros, ainda se passa, com escadas de madeira atadas por lenços. Mas a segunda, de seis, é terrível. E no meio está um corredor, uma vala vigiada pela Guardia Civil, que as autoridades espanholas decidiram considerar como Marrocos, o que lhes permite expulsar quem aí seja apanhado. Imagino-o por isso no corredor que separa as duas barreiras, e devolvido à procedência. Os que passaram, não sabem. No salto da noite, não se olha para o lado, só para a frente. Mas se não foi assim, podia ter sido. Foi o que se passou com centenas de sem papéis nestes dias. Apanhados entre cercas de concertinas, expulsos, amontoados e depositados, sem comida ou água, em pleno deserto. Ou, depois de se conhecer o crime, reconcentrados em Bouarfa, onde autocarros os levam rumo ao Sul, para lugares de nenhures.
Dizer que a responsabilidade é de Rabat, é a verdade que oculta uma mentira. O que se passou naquela fronteira foi um outsorcing. A Europa paga a Estados que não respeitam os Direitos Humanos para fazerem o trabalho sujo que não fica bem às democracias. E lava daí as suas mãos. Simplesmente deplorável!