Democracia sem Estado
2006/02/01Fumos de guerra
2007/03/01De pequenos nadas…
Disse-me que, no fim, o Líbano sobreviverá, mais uma vez, ao agressor. Mas sabe, também que, “esperando a vitória, não haverá uma só casa de pé”. Não tem escolha, a guerra não lhe deixa escolha.
Editorial do GLOBAL
Regresso pela estrada de montanha por onde entrei, vindo de Damasco. A fronteira ainda está aberta. Por poucos dias, aliás. O cenário já é distinto do da chegada, três dias antes. Descendo para o vale de Beckaa, novos camiões de alimentos jazem, calcinados, nas bermas. A caixa aberta de um deles tem ainda os legumes à vista. Um pouco mais abaixo, uma jornalista da Al Jazzira faz o seu directo com uma vila por cenário. Também aí caíram os castigos do céu.
Israel atacara pela manhã as encostas do vale. Voltaria a fazê-lo nos dias seguintes.
Em Beirute, a delegação do Partido da Esquerda Europeia esteve três dias. Fomos devidamente desaconselhados pelas respectivas embaixadas e delegação da União Europeia quanto a uma prevista deslocação ao hospital de Saiida, cidade costeira mais a Sul. Elas não acreditavam, está visto, nas virtualidades dos corredores humanitários “garantidos” por Israel, mesmo que o transporte fosse assegurado pelos Médicos sem fronteiras… Acabei por não visitar, desta vez, o Sul. Também não veria por lá nada que as televisões não mostrem todos os dias.
Ao 15º dia de guerra, Hassam Hajj, deputado do Hezbollah, estimava em mais de duas centenas os edifícios destruídos na zona Sul de Beirute. Cinco mil famílias sem casa, portanto. Ou seja, 40 mil desalojados, uma gota mais de tragédia nos 750 mil que já tinham fugido da guerra e se encontram espalhados pela outra Beirute, a poupada, e pelo centro e Norte do país. A maioria destes refugiados são crianças – 45 por cento até aos 12 anos, estima a Ministra dos Assuntos Sociais que, diante de nós, exibiu durante uma hora a sua impotência. Acotovelam-se em escolas, em casas desocupadas, ou recebidos por famílias. Sabe-se hoje que isto é pouco, comparado com o tormento dos que não conseguiram sair ou, pelos mais variados motivos, não quiseram abandonar as suas terras. Sabe-se hoje que o massacre de Qana foi apenas o mais brutal. Não foi único, nem excepção.
Não fui para Sul, mas tive oportunidade de falar com pessoas que aí conhecera de outras viagens: homens e mulheres que iniciaram as suas fugas ao quinto e sexto dias de guerra. Estive também com os grupos de jovens que, na Zico house, se desdobravam em equipas de apoio humanitário. Esta casa apalaçada do centro da cidade transformou-se, por vontade do seu proprietário, num espaço auto-gerido onde diversos projectos de urgência montaram os seus centros logísticos. Ali não se distinguem confissões. Há chiitas, sunitas, cristãos e druzos. A causa é a mesma – minimizar os efeitos da guerra e, ao mesmo tempo, realizar acções de protesto contra esta guerra de agressão, que cheguem aos media internacionais.
Entre todos e todas, recordo Fawaz Hanadi. Conhecia-a em Tiro, onde era vereadora, eleita como independente nas listas do Hezbollah. Para quem julgue que este movimento político, maioritário no Sul do país, é um mundo fechado de barbudos fanáticos com rockets ao ombro, fique pois a saber que esta mulher é, ao mesmo tempo, chiita e laica, não usa lenço, veste à ocidental e não é casada. Sendo independente, aceitou o convite do Hezbollah para integrar as suas listas, porque os considera “sérios e honestos no trabalho” que fazem. E se o Hezbollah a convidou é porque dirige, há anos, um projecto de diálogo inter-comunitário na região. Valeria a pena contá-lo, como começou a partir do diálogo com os prisioneiros da prisão e centro de tortura que os israelitas instalaram em Rhyam, quando ainda ocupavam a faixa Sul do Líbano. Mas hoje, até isso é risível. Saiba apenas que a vida de Fawaz não pertence aos catálogos e epítetos da “guerra contra o terrorismo”. E que a desmente, como tantas outras. Agora em Beirute, depois de ter colocado a sua avó e a sua mãe em segurança, ela continua o seu voluntariado, apoiando clínicas móveis. Arranjou tempo para se encontrar comigo. Estava naturalmente ansiosa, cansada, estafada. Disse-me que, no fim, o Líbano sobreviverá, mais uma vez, ao agressor. Mas sabe, também que, “esperando a vitória, não haverá uma só casa de pé”. Não tem escolha, a guerra não lhe deixa escolha. Mas odeia o seu cheiro e a sua cor, a do sangue que corre entre destroços. Agradeceu-me o apoio. Não precisava. Neste reencontro, em que se perguntava que “mal teria feito ao mundo por ser xiita”, percebi o valor que pode ter uma visita em tempo de barbárie. É o de um pequeno gesto, um pequeno nada em forma de abraço. Para quem resiste e se sinta abandonada por um mundo incapaz de travar a besta assassina, ajuda. Ajuda mesmo.
* Eurodeputado do GUE/NGL, eleito pelo Bloco de Esquerda, e membro do Presidium e da Executiva da European Left. Dirigiu a delegação de 6 deputados que este partido enviou a Beirute entre 25 e 27 de Setembro