O outro lado da guerra
2005/11/05Revolta e insucesso em Paris
2005/11/19Os socialistas na encruzilhada
Diário de Notícias, Opinião
Tony Blair propôs ao parlamento inglês que a detenção de suspeitos de terrorismo, durante 90 dias, pudesse dispensar o acesso a advogado. Guantanamo na ilha de Sua Majestade, mas de acordo com a lei. A este golpe nas liberdades individuais até os conservadores disseram Não. E a proposta chumbou porque dezenas de deputados trabalhistas abandonaram o primeiro-ministro. Ainda bem. Mas importa perceber como é que esta iniciativa pôde ser tomada por um líder socialista. Em rigor, pelo mais influente dos líderes socialistas na Europa…
Ocorre-me outra pergunta: se ela fosse tomada por José Sócrates, ao abrigo de uma política comum de segurança a nível europeu, como se comportariam os candidatos presidenciais em Belém?
Aposto que Cavaco Silva aplaudiria; e que Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa aplicariam um vigoroso veto político. Eles usariam todos os instrumentos legais, incluindo os da crise política, para evitar a aplicação de tal lei. Não poriam lá o seu nome.
E quanto aos outros dois candidatos? Não sei mesmo o que fariam. Quando muito, diria que Mário Soares, hoje, não cobriria o governo. Apesar de candidato oficial de José Sócrates, tem suficiente peso para decidir por si. Mas por Manuel Alegre não poria as mãos no fogo. Claro que a sua voz grossa se elevaria em defesa das liberdades. Mas… e na assinatura fatal? O critério de suposição só pode ser o seu comportamento passado e presente. Que os meus amigos que simpatizam, por boas razões, com a candidatura de Alegre me desculpem, mas ele votou no Parlamento todas as medidas propostas pelos governos socialistas. Sem excepção. Houve uma ocasião em que o seu voto poderia, até, ter dado outro destino a António Guterres – quando este preferiu o veneno de um queijo limiano, a depender de dois deputados do Bloco que exigiam, em contrapartida, o arranque da reforma fiscal. Se nesse momento Manuel Alegre tivesse falado, a sua voz teria sido decisiva. Mas ficou-se.
O mesmo se voltou a passar agora no Orçamento de Estado. Alegre estava na Assembleia e, no entanto, faltou à votação “por ser candidato”. E logo acrescentou aos jornalistas que, se dependesse de si, lá estaria para votar o Orçamento do governo. Não há razões para suspeitar que assim não fosse. E que em Belém faria o que sempre fez. Diria poeticamente que há mais vida para além do défice… e depois daria cobertura ao orçamento que coloca a vida a toque de caixa do défice.
Talvez com a lei de Blair fosse diferente. Talvez. Mas quem garante?
Manuel Alegre é o dirigente do PS que melhor ilustra a encruzilhada em que os socialistas por cá, e um pouco por todo, o Mundo se encontram. A diferença é que lá por fora, as coisas mexem. Oskar Lafontaine, dirigente histórico da esquerda da social democracia alemã, demitiu-se de ministro das Finanças quando percebeu que não tinha margem para as políticas da social-democracia dos bons velhos tempos. E agora disse adeus ao seu partido de sempre, para dar rosto ao primeiro partido de esquerda alternativa que a Alemanha tem em muitas décadas.
Em Israel, o mesmo se passou esta semana. O novo líder dos trabalhistas também saiu do partido quando se opôs à sua política de colonatos. Agora regressou sem meias tintas: o Labour abandona Ariel Sharom e provoca eleições. Do mesmo modo, em França, a esquerda dos socialistas teve coragem para preferir o povo ao Tratado Constitucional. Até em Espanha, Zapatero enfrenta o conservadorismo da Igreja nos casamentos gays, e a tradição imperial de Castela na relação com as nações. Só por cá os socialistas não enfrentam nada que realmente pese.
Lá fora, o socialismo mexe. Por cá, finge que mexe, porque o ziguezague comanda e o rancor do ego é a sua gasolina. Sinceramente, tenho alguma dificuldade em perceber porque há-de o povo de esquerda ser chamado a dirimir quezílias menores entre velhos amigos.
Do que este país precisa, é de uma discussão séria sobre as escolhas que constroem a alternativa política ao continuismo da crise. É isso que se joga na primeira volta, e que conta para o dia seguinte. Para esse debate, o candidato mais bem preparado é Francisco Louçã. Vindo de fora da tradição dos partidos socialistas, é ele quem, paradoxalmente, hoje representa e resgata as políticas que permitem reinventar o Estado social. A campanha ajudará a perceber este rigor e esta vontade.