Os socialistas na encruzilhada
2005/11/13Aldrabice
2005/11/25Revolta e insucesso em Paris
Diário de Notícias, Opinião
Não raro, a resposta tem sido a “facilidade”: melhorar os índices de sucesso escolar por via da diminuição da exigência. A resposta que vos proponho é outra: a reinvenção da escola, em particular nas periferias das grandes metrópoles. Segue e conclui na próxima semana.
1. Uma deputada filipina pergunta ao embaixador francês “Afinal porque se revoltam os vossos jovens?” Este responde com desarmante franqueza: “A minha primeira reacção é dizer-lhe, “não sei”. Não sei mesmo. Eles não pedem nem exigem. Simplesmente, exibem a sua raiva. Depois de reposta a ordem, temos que saber ouvir o que eles não conseguem exprimir”.
Este diálogo ocorreu em Dublim, num encontro mundial de parlamentares, sobre políticas de imigração e integração. A preocupação principal do embaixador era explicar que “Paris não está a arder”. É, obviamente, a verdade de uma mentira. Se não está, então porquê três meses de estado de excepção, ao abrigo de leis que remontam à guerra da Argélia?? Mas adiante. A fúria que se manifestou em França – e não em Londres, Madrid ou Lisboa – levanta problemas bem mais vastos do que a tentação autoritária de um poder que se quer exibir. De facto, as condições materiais de vida nos bairros sociais de Paris estão presentes em todos os subúrbios das grandes cidades do chamado 1.º mundo.
Essas condições resumem-se numa palavra: discriminação. Ou em duas: dupla discriminação. A que decorre da condição periférica dos habitantes desses bairros; e a que se lhe soma por causa da cor da pele, da estranheza do nome que se tem ou da religião que se pratica. Os estudos não se enganam: o desemprego é alto em França; mas é mais alto nas banlieues, onde chega a 25 por cento; e nestas pode atingir os 50 por cento entre os descendentes de magrebinos e africanos.
2. Numa recente entrevista, Emmanuel Todd sustenta que a França é vítima do sucesso das suas políticas de integração. A afirmação parece tão absurda quanto a do embaixador francês. Mas o absurdo tem as suas razões. De facto, esta não é uma revolta de jovens imigrantes. Em 1800 detidos, só 120 eram imigrantes. Também não é uma revolta social politicamente enquadrável. É a explosão de uma minoria de jovens da terceira geração que vivem encerrados nas suas cités; que abandonaram o sistema escolar; e que já não aceitam trabalhar nas condições em que pais e avós o fizeram. São muito mais franceses do que pensam, até no modo como preferiram a rua às regras estreitas da “família alargada” dos parentes. Neles, e na sua violência, se condensam todos os fracassos das políticas de integração.
Dois modelos têm sido aplicados na inclusão das comunidades imigrantes e seus descendentes o multicultucultural e o integracionista. O primeiro, anglo-saxónico, evita as “misturas” e favorece as identidades de origem, desde que não ousem ser mais do que isso. A sua tolerância é o seu limite: a fronteira entre desenvolvimento separado, gueto e apartheid é finíssima. O segundo, pelo contrário, aposta na capacidade de o país de destino ser capaz de integrar quem a ele chega, na base de uma comunidade de valores e direitos comuns. O seu universalismo é também o seu calcanhar de Aquiles em regra, integração é assimilação. Alain Touraine definiu isto mesmo numa frase: “o nosso republicanismo rejeita as diferenças”. Na óptica do discriminado, nenhum dos modelos satisfaz. Em certo sentido, a derrota estava inscrita no destino. O mundo em que essas estratégias se desenvolveram já não existe. E quanto à mobilidade, os fluxos podem ser mais ou menos geridos, mas o fenómeno não pode ser contido.
A pressão cumulativa de todas as mudanças geradas pela globalização capitalista é brutal. Nenhum poder público lhes poderia responder com facilidade. Contudo, a principal razão para o nosso fracasso colectivo na relação com o “outro” é a própria crise das políticas públicas. Sempre que o mercado gera desigualdades – e gera-as todos os dias -, elas são incapazes de suster a queda nos abismos da vida.
Sob intenso e irresponsável ataque ideológico, as políticas públicas regridem. A realidade é que os serviços sociais se debatem não apenas com a crónica e estúpida carência de recursos, mas com um mundo onde a mão invisível do mercado dita as regras e comanda os sonhos.
Tão ou mais importante do que a falta de empregos nos bairros sociais, conta o imenso fracasso da escola pública
3. O primeiro argumento decorre da evidência: se o ensino nos bairros pobres fosse “um sucesso”, os jovens não seriam atirados, tão cedo, para o mercado de trabalho. Há uma relação inversamente proporcional entre a frequência escolar e as taxas de desemprego. “Uma escola de sucesso” é uma eficaz política contra o desemprego.
Segundo argumento: o mercado de trabalho, nas nossas sociedades, encontra-se fragmentado. De um lado, a oferta dos trabalhos mais duros e manuais dirige-se à procura imigrante, independentemente da sua qualificação. Do outro, a oferta de empregos para qualificações médias e elevadas, destina-se aos mercados nacionais “clássicos”. É porque o mercado se encontra fragmentado, que não existe correlação entre imigração e índices de desemprego. Essa tese, tão cara às direitas radicais, não encontra fundamento em nenhum país da Europa.
E a razão porque o índice de desemprego entre os jovens das periferias é tão elevado, deve-se à “aliança” entre a fragmentação do mercado de trabalho e o insucesso escolar. O jovem que foi expulso do sistema escolar não tem formação para entrar nos “mercados qualificados”, e tende a recusar o “mercado dos imigrantes”.
Este fenómeno não é novo. Os portugueses conheceram-no quando, na década de 60, em França e na Alemanha faziam – como os magrebinos e os turcos – “os trabalhos que os franceses e alemães já não queriam para si”. Como no Portugal de hoje, são africanos, ucranianos e brasileiros, que fazem os trabalhos que a “civilização do sucesso” impele os portugueses a rejeitar. É idiota, e principalmente inútil, invectivar o povo. Porque este se comporta de acordo com os padrões de sucesso que o capitalismo impõe a cada um(a). Assim como são raros os imigrantes que regressam a casa sem terem “vencido”, são também cada vez menos os nacionais que aceitam repetir o destino dos seus pais ou, o que é o mesmo, trabalharem abaixo das qualificações.
Articulistas de direita responsabilizam o Estado social por esta situação. Pacheco Pereira escreveu que “a intensa subsidiação do providencialismo de Estado” às “populações deprimidas” gera “expectativas artificiais e um direito permanente de reivindicação”. Que ele me perdoe, mas confunde causas e efeitos, além de exagerar. Já Luciano Amaral acha que a “intensa subsidiação” não passa de “esmola”. Mas, em compensação, vai bem mais longe no seu darwinismo social: o welfare state é, para ele, “um incentivo ao desemprego na segunda geração”. Por outras palavras, corte-se no dito, que a malta deixa de malandrar…
4. Seria bom descer ao real.
A maioria lá se vai arranjando, entre escola e trabalhos precários. Quem andou a incendiar carros, farmácias e escolas, foi uma pequena minoria dos que vivem nas “cités”. E metade fizeram-no, porque não conseguiram romper com os seus círculos de amizade, e o sistema de “poder de rua” que representam os bandos. Nada disto é novo.
O “poder da rua” sempre existiu nos bairros pobres, mais ou menos ligado às economias paralelas. Esse poder ergueu nações – algumas bem no goto do pensamento conservador… – e nele se alicerçaram organizações sociais e criminais, ditas de “protecção”. O que importa perceber, é que o Estado social foi, até hoje, o mais poderoso instrumento inventado para contrariar a “lei da selva” e limitar o alcance da mais liberal das economias, precisamente a “paralela”. Ataquem-se ainda mais os serviços e os apoios públicos, e vos garanto que, em breve, não haverá polícia que trate do assunto…
Pior: para estes jovens não há “intensas subsidiações”. Nem “esmolas”. Há a escola e pouco mais.
5. Se hierarquizarmos as aquisições do século XX, a escola pública encontra-se seguramente entre as principais. A democratização do acesso ao ensino alterou em profundidade as relações de poder nas famílias, os mercados de trabalho, e os níveis de formação e civilidade. O Mundo era bem mais cruel antes da escola.
Mas entre a família, a rua e a televisão, a escola perdeu centralidade. Essa é a sua crise. Uma crise de lugar.
Não raro, a resposta tem sido a “facilidade”: melhorar os índices de sucesso escolar por via da diminuição da exigência. A resposta que vos proponho é outra: a reinvenção da escola, em particular nas periferias das grandes metrópoles. Segue e conclui na próxima semana.