Fumos de guerra
2007/03/01ESTÓNIA A luta pelos símbolos
2007/05/01O JARDIM DOS CAMINHOS QUE SE BIFURCAM (I)
O título deste ensaio – que prossegue no próximo número – sobre a União Europeia, 50 anos depois do seu primeiro momento constitutivo, é de Jorge Luís Borges. Nesse conto, situado em plena primeira grande Guerra, o escritor argentino discorre sobre o papel dos actos no desenho dos distintos futuros. A sua parábola aplica-se, como poucas, à encruzilhada em que a Europa se encontra.
I. A presidente europeia em exercício, Angela Merkel, divulgou no passado dia 25 de Março, uma Declaração de Berlim que, assinalando o cinquentenário do Tratado de Roma, tinha por objectivo relançar o projecto europeu. O primeiro facto a assinalar é que o texto, intensamente negociado pelos Estados membros, não tem as suas assinaturas, mas apenas os respectivos consentimentos. Esta é a Declaração da presidência alemã aceite pelos seus pares na União.
A segunda particularidade da Declaração é a de variar em função da tradução, ao sabor das prerrogativas de cada chancelaria. Por exemplo, a maioria dos Estados membros considera que no “modelo europeu” se “conjugam sucesso económico e responsabilidade social”. Mas outros, a braços com verdadeiros divórcios entre a União e os seus cidadãos, preferiram substituir a palavra “responsabilidade” pelo conceito de “solidariedade”…
O singular modo deste texto de página e meia evidencia dois dos actuais impasses europeus, a saber: a dificuldade do entendimento entre Estados, que não permite, em regra, mais do que acordos mínimos, mesmo quando todos convergem nas escolhas fundamentais; e a percepção de que se abriu, no espaço da União, uma fractura entre “os de cima” e os “de baixo” que recomenda, acima de tudo, prudência. Qualquer das constatações bastaria para que a celebração do 50o aniversário do Tratado de Roma tivesse sido pretexto para uma importante discussão pública sobre o futuro da União. Mas isso seria pedir demais à sua presidência.
II. Não estranha, em consequência, que o curto e laborioso texto de Angela Merkel dedique metade das suas linhas à glorificação do passado, um terço à reafirmação do presente, e que o futuro se fique por dois breves parágrafos, que se concluem com uma promessa de marcha forçada: ”até às eleições para o Parlamento Europeu de 2009, dotaremos a União Europeia de uma base comum e renovada”.
Vista de Berlim ou de Bruxelas, a aposta faz todo o sentido. Para quem dirige a União, esta é o resultado de uma voluntarista sucessão de actos de vontade praticados por visionários de longo alcance. Para a eurocracia – e dela é tributária a Alemanha – a União é consequência de uma vontade de vanguarda, e o consenso popular o seu resultado. Essa a maior das lições que tiram de 50 anos de História unificada. A tese que se sustenta nesta reflexão é precisamente a contrária: hoje, só é concebível um projecto europeu sólido, se o consenso popular for uma condição prévia do seu sucesso.
III. No Jardim dos caminhos que se bifurcam pode imaginar-se aquele em que vinga o voluntarismo da senhora Merkel. Mas é, entre todos, o menos provável. Antecipemo- lo em forma de road map, para se perceber porquê:
Até Junho de 2007, a presidência alemã divulgará o calendário para um novo Tratado. A dificuldade maior desta fase 1 é a definição do âmbito do novo texto: será “institucional” ou “constitucional”? Metade dos governos prefere a primeira variante, em teoria menos problemática; contudo, quem já ratificou a actual proposta de tratado prefere a segunda versão para não ter que dar o dito pelo não dito ante as suas opiniões públicas. Estados poderosos encontram-se dos dois lados da barricada. E a França em nenhum, pelo menos até à eleição presidencial de Maio.
Admitamos que o diferendo pode ser diferido para a fase 2, que ocupará as presidências portuguesa e eslovena da União. Entre Julho de 2007 e Junho de 2008, estas presidências realizarão pelo menos duas conferências inter-governamentais com o objectivo para chegarem a um novo texto. Ambas prefeririam não ter que o fazer, mas não têm como escapar.
A Conferência da presidência portuguesa deverá dirimir o desacordo “ táctico”. A variante “institucional” é minimal – deixa cair a terceira parte da actual proposta de Tratado para salvar a primeira e, talvez, a segunda. Já na opção “Constitucional”, mantém-se todo o articulado e acrescentar-se-ão os anexos que forem necessários para “amolecer” a rejeição de franceses e holandeses. É na presidência eslovena que se concentram os verdadeiros problemas. Mesmo que vingue a perspectiva minimal, não faltará quem coloque em cima da mesa novos equilíbrios de poderes, destinados a reforçarem a dimensão europeia das políticas em detrimento das prerrogativas de cada Estado. Por muito que todos reafirmem loas de fidelidade ao anterior Tratado, ele deixa de ser intocável a partir do momento em que a discussão é reaberta. Os eslovenos, periféricos em relação à Alemanha, e ainda com reduzida experiência nas lides e manhas da União, estarão metidos numa verdadeira alhada. Não deixarão, aliás, de negociar duramente as contrapartidas do sarilho que lhes caiu em sorte…
Admitamos, contudo, que os líderes europeus chegam, até Junho de 2008, a uma nova versão do Tratado. Segue-se a fase 3, de ratificação, a decorrer entre Julho de 2008 e Junho de 2009, mês das eleições para o Parlamento Europeu. Nos 17 Estados que já haviam ratificado a anterior versão, os governos imporão expeditas confirmações parlamentares. Ainda assim, não é certo que todos consigam afastar da equação a figura do referendo. Paradoxalmente, quanto mais diferente seja o novo texto da versão original, pior. Já com a França e a Holanda se passa precisamente o contrário. Finalmente, sobram os que ficaram de fora, como Portugal, o Reino Unido, a república checa ou a Polónia.
Em teoria, é possível fazer o pleno do “Sim”. Mas as hipóteses são diminutas. O sucesso do road map alemão depende de uma excepcional conjugação de imponderáveis. Por outro lado, o seu preço é incalculável. Quem alinhar na marcha forçada das ratificações parlamentares, corre o sério risco de ver duramente castigada a sua ousadia nas eleições europeias e legislativas que se seguem. Retirar o povo da equação é a condição da ratificação. Eis porque o improvável sucesso desta só tem uma consequência certa – aprofundar o divórcio entre os povos e a instituição europeia, na exacta medida em que dispensa a sua opinião.
O calcanhar de Aquiles da Declaração de Berlim é simples: o preço do sucesso constitucional é o fracasso da democracia.
IV. Podem antever-se outros caminhos? Podem. E, portanto, outros futuros. Vista “de baixo”, a Europa está muito longe da visão idílica com que os seus líderes a apresentam. As preocupações da maioria estão bem para cá da urgência constitucional. O emprego deixou de ser seguro; os novos são precários; o acesso ao sonho universitário deixou de representar uma garantia de futuro; a diminuição de regalias nos sistemas de saúde e segurança social passaram a ser uma realidade tão forte quanto a do excessivo endividamento bancário. Eis por onde andam as preocupações. Pelas incertezas da vida.
Por outro lado, a revolução comunicacional faz chegar à casa de cada família mil novas “ameaças”, reais ou fictícias. Guerras, atentados terroristas, roubos mediatizados no quarteirão do vizinho, acidentes de estrada ou cataclismos e catástrofes ambientais são diariamente igualizados nos serviços de notícias.
Desde o 11 de Setembro, mesmo clássicos conflitos urbanos se passaram a olhar à luz do “choque de civilizações”. Uma nova mundividência do quotidiano emerge na Europa, sob a forma de uma percepção angustiada do mundo e da vida.
Finalmente, o recuo das formas organizadas de representação social, em resultado de duas décadas de liberalismo económico, e a crise da própria política, hoje sob suspeita generalizada, completam o caldo de cultura onde muitos redescobrem o Estado-nação como lugar de refúgio. 50 anos após o Tratado de Roma, parte não negligenciável dos europeus querem menos ou nenhuma Europa. No Jardim, esta é outra das bifurcações possíveis.
O grande beneficiário político da marcha forçada em direcção a um Tratado recauchutado, é o soberanismo e, neste, as suas correntes de direita e extrema-direita. Também esta é uma consequência certa da hipótese alemã. Antigos e moderníssimos, os populismos de direita opõem à arrogância eurocrata uma mistura explosiva de argumentos que colhe em todas as inseguranças.
V. Encontro-me entre os que pensam que a integração económica e política de um espaço com mais de três dezenas de Estados e outras tantas línguas, é uma obra de extraordinário alcance. Não se deve renunciar à ideia de que os conflitos se podem resolver à mesa e não em campo de batalha. Eis porque não pode a esquerda “deitar fora o bébé com a água do banho”. A hipótese estratégica a que o Bloco é fiel desde a sua fundação mantém plena actualidade: uma mudança no papel da Europa é indissociável da sua própria refundação democrática e social.
Se a integração favorece bem mais o Capital do que o Trabalho, é preciso que assim deixe de ser. Se temos uma Europa de Paz, mas não uma Europa para a Paz, é por esta que nos devemos bater. Se temos um mercado único, mas não uma Europa social, é pela última que nos mobilizaremos. E se a União escolhe os seus imigrantes e trata os restantes como descartáveis ou como ilegais, é pela dignidade da vida humana que juntamos forças. Resistência social, portanto. Mas também proposta política. As questões do poder não nos são indiferentes. Não é por acaso que o liberalismo económico quer a sua constitucionalização. O socialismo só pode combater esta perspectiva. Mas não lhe chega a negativa. Ele tem que se afirmar como projecto europeu e para hoje. Deve ser o terceiro dos futuros possíveis. O melhor.
VI. A condição desse projecto é a ideia de que a Europa não avança de costas para os seus povos e cidadãos. A marcha forçada alemã deve ser contrariada com a exigência de referendos. Simultaneamente, deve apresentar-se a alternativa de um processo constituinte indiscutivelmente democrático.
O próximo Parlamento Europeu deve ter poderes para escrever a primeira versão de um novo Tratado Constitucional. Isso faria das eleições de 2009 o primeiro grande momento de debate popular em toda a Europa sobre o seu futuro. Cada força, europeia ou nacional, diria ao que vem – favorável a que tipo de Tratado e porquê; ou contrária, e obrigando-se a explicar o que propõe em alternativa.
A primeira versão do novo texto seria, em seguida, objecto de segunda leitura pelos parlamentos nacionais. Um compromisso entre Parlamento e Conselho selaria o documento a ser ratificado por cada Estado, de preferência por referendo. Se a marcha forçada alemã quer retirar o povo da equação, esta alternativa, pelo contrário, coloca-o, pela primeira vez, no centro da decisão europeia. A partir daí, a luta continua. Como sempre. Mas sob uma base bem mais avançada.