Quando os tontos falam do que não conhecem
2005/03/12Breviário de um nome de difícil pronúncia
2005/03/26A Comissão, a directiva e o Tratado
Diário de Notícias, Opinião
Durão Barroso assumiu o papel de defensor oficial de uma proposta de directiva que nem sequer é de sua paternidade; e por causa dela arrisca-se a ver chumbado o Tratado Constitucional europeu em França, o que, aliás, o chumbaria tout court, porque carece da unanimidade dos 25 Estados membros para entrar em execução. A costumeira obstinação barrosista arrisca-se a derrotar o “projecto global” que os liberais têm para oferecer à Europa. Ainda bem, se assim for.
A última sondagem em França – publicada esta semana no Le Monde – assinala um recuo de 10 pontos no “sim” ao Tratado, face à sondagem de há três meses. O “sim” ainda alcança 56%, mas o número de hesitantes é vasto e as intenções firmes de voto são maiores na área do “não”. O que parecia um resultado adquirido deixou de o ser.
Uma proposta – a directiva Bolkestein – encontra-se entre os factores que estão a deslocar as opiniões para o “não”. Os eleitores não percebem como pode esta Constituição “constituir um avanço social”, se ela não impede o cauchemar da pior directiva dos últimos anos. De que adianta o Tratado, se é em nome dele que se prepara a lei que dualizará os mercados de trabalho na Europa?
Nos países do centro da Europa, a directiva Bolkestein marca a agenda política. Hoje mesmo, em Bruxelas, uma manifestação europeia dirá como está o grau de mobilização cidadã. Mas até os últimos dias de uma instituição de maioria conservadora, como é o Parlamento Europeu, deu indicações de que a directiva é de resultado incerto. Com efeito, a comissão parlamentar de ambiente e saúde pública aprovou, por grande maioria, um parecer muito crítico. E na comissão de cultura e educação, da direita à esquerda, os eurodeputados consideram que este domínio deve ficar de fora do âmbito de aplicação da proposta. Porque não querem o fim das políticas públicas de apoio aos bens culturais.
Na realidade, a directiva é problemática em dois domínios essenciais na definição do seu âmbito de aplicação; e no critério que usa para promover a criação de um mercado único europeu de serviços – o princípio do “país de origem”. O texto distingue entre “serviços económicos de interesse geral” e “serviços de interesse geral” (para bom entendedor, os serviços públicos). E declara restringir a aplicação do novo quadro legal apenas aos primeiros. Sucede que em muitos serviços públicos já se pratica o outsorcing ou a gestão privada. E, assim, a directiva não evita que o mercado livre de prestação de serviços entre nos serviços públicos pela porta do cavalo.
Mas o que acentua a contestação é que tal liberalização se faça na base das leis do “país de origem”. Trocando por miúdos uma empresa francesa de mediação de trabalho na Europa desloca a sua sede social para um recôndito país da União como, por exemplo, a Lituânia. A partir daí, poderá exportar trabalhadores para serviços em França de acordo com as leis da Lituânia e não ao abrigo das leis do “país de destino” desse contrato. Poderá, até, empregar trabalhadores franceses em França, de acordo as leis de trabalho e direitos sociais ou ambientais em vigor na Lituânia. Não é preciso ser adivinho para perceber a oposição que tal suscita. Em países muito atingidos pelas deslocalizações, o horizonte só pode ser de tempestade. E a dualização dos mercados de trabalho é a consequência mais que previsível deste pesadelo.
É compreensível o pânico na direita francesa e entre os socialistas do “sim”, a braços com uma maciça rebelião dos seus eleitores. Em defesa do “sim”, os socialistas envolvem-se em todos os movimentos de contestação social, procurando demonstrar que Tratado e Bolkestein são coisas diferentes. Mas, por outro lado, é o crescimento da contestação social que está a fundir, nas ruas, os dois documentos. Quanto a Chirac, ante o êxito da greve geral da semana passada, decidiu abrir os cordões à bolsa. E logo a seguir, declarou “inaceitável” a directiva Bolkestein. Ele sabe que a quebra do “sim” se deve à deslocação dos eleitores para um “não” de esquerda. Mas nada disso interessa a Durão Barroso. Está a direita em risco de perder o essencial – o Tratado – e Barroso insiste na Bolkestein. Barroso é como os neocons de Washington, só sabe marchar em frente. Pode ser que se estampe e que a Europa ganhe com isso.