MIOPIA
2005/03/01Menos que revolução e mais que viragem
2005/03/05Líbano: Quando os cedros tomam a palavra
O homem mais rico do país foi assassinado. Um movimento pacífico derruba nas ruas o governo pró-sírio. A comunidade xiita reage e demonstra a sua força. Entretanto, a França espreita a sua oportunidade, os EUA querem humilhar e vergar Damasco, e a Europa, mais uma vez, não existe.
Estrasburgo, 8 de Março de 2005: enquanto 1 milhão de libaneses se manifesta em Beirute respondendo a uma convocatória do Hezbollah e das organizações pró-sírias, o Parlamento Europeu debatia um projecto de resolução sobre os acontecimentos. Nesse dia, a posição do Conselho e da Comissão eram, ainda, reguladas por alguma prudência. Alinhavam o seu diapasão pela resolução 1559 do Conselho de Segurança das Nações Unidas – que exige o abandono imediato e total das forças sírias para as fronteiras do seu país – mas evitava “massacrar” Damasco ou incluir o “Partido de Deus” na lista das organizações terroristas. Contudo, a direita parlamentar, alinhada pela posição israelo-americana, insistiu. E conquistou os liberais para ela.
Dois dias depois, as direitas amarravam os socialistas a um compromisso onde se instava a Síria à abstenção de qualquer ingerência nos assuntos internos do Líbano (como se fosse só ela…) e a cessar o seu apoio “às actividades do Hezbollah e demais organizações terroristas”, o passo necessário a uma posterior inclusão dos fundamentalistas xiitas na lista anti-terrorista.
A esquerda, que apresentara uma resolução própria, clara no apoio ao movimento que exige a plena soberania do Líbano, mas igualmente responsável na recusa de diabolizar a Síria e o Hezbollah, encontrou-se, no fim dos votos ante o dilema de votar favoravelmente a resolução, para não ser acusada de dar cobertura ao Hezbollah, ou ter a coragem de contrariar um texto que cola a Europa à ofensiva norte-americana na região. Escolhi a segunda opção. Posso bem com as falsas acusações; não posso é marchar ao lado dos que, irresponsavelmente, estão a lançar o Líbano na sua segunda guerra civil.
A política no mundo árabe raramente é o que parece. E no Líbano muito menos.
O assassinato, em circunstâncias não esclarecidas, do homem forte do país, Rafic Hariri, desencadeou um levantamento nacional e pacífico exigindo a devolução da soberania plena aos libaneses; entretanto, a França e os Estados Unidos, realinhados nas políticas para o médio e o próximo oriente, fazem votar na ONU uma resolução exigindo a retirada imediata das forças sírias que tutelam o país dos cedros; sob pressão de “baixo” e de “cima”, Damasco ziguezagueia para, após a queda do governo de Beirute, acelerar a retirada dos seus 14 mil homens para o vale de Beekaa, um pedaço de terra fértil entre montanhas, junto à fronteira entre os dois países. Finalmente, a comunidade xiita reage, trazendo à luz do dia o segredo que todos conheciam – a enorme influência do Partido de Deus entre a maioria dos pobres do país. O Líbano entrou em ebulição. E todos os alinhamentos se refazem.
Beirute, 20 de Fevereiro de 2002: o início da invasão norte americana do Iraque está por dias. Na capital do Líbano, alguns milhares de pessoas ouvem o líder do Hezbollah provocar os dirigentes árabes: “não permitam que os franceses sejam mais árabes que nós!” Ele referia-se à corajosa posição francesa ante a guerra anunciada. Mas passaram dois anos e uma recente viagem de G.W.Bush ao velho continente. As lideranças dos dois lados do Atlântico fizeram as pazes e o Líbano fez parte desse acerto – é o ganho outorgado a Chirac pelo imperador. Em compensação, este ganha a aquiescência francesa para vergar Damasco, de preferência sem disparar um tiro. Ironias da História: no início dos anos 90, enquanto as tropas da coligação livravam o Koweit dos tanques de Saddam, os EUA cobriam os acordos de Taeff, que consagravam a tutela militar síria sobre o Líbano… Portanto, mudanças de monta.
Mas Beirute deve estar exactamente como a vi, há dois anos. Esburacada ao longo da sua avenida central, a estrada de Damasco, mostrando as feridas de uma guerra civil onde todos lutaram contra todos; elegante ao longo da marginal, em tributo à cultura ocidental que por ali passou; e confusa, pobre e paupérrima, consoante se penetre no interior da cidade sunita, xiita ou palestiniana, e por esta exacta ordem. No meio, esventrado, está o Centro da cidade, onde o primeiro ministro assassinado, Rafic Hariri, aplicou em imobiliário de luxo a inesgotabilidade dos seus recursos financeiros, um dia adquiridos à sombra da asa protectora do então príncipe saudita, Fahd Abdel el Aziz. E lhes adicionou, com garantia de benefícios privados, os recursos do frágil Estado libanês, que em 3 anos conseguiu a proeza de sextuplicar a sua dívida pública…
Tudo na mesma? Salvo o facto que os cedros desataram a falar. As duas comunidades que historicamente se identificam com uma identidade nacional libanesa – os druzos e os cristãos maronitas – aproveitaram a circunstância do crime para lançarem um movimento pacífico e democrático pela restituição da soberania ao país. Os antigos inimigos jurados demitiram o governo sem banho de sangue, algo impensável num país árabe. Por outro lado, o Hezbollah exibe a sua força guardando as armas e sem exigir a “democracia de um homem, um voto”, que os levaria ao poder absoluto. É sábio. Mas na região e no país, tudo se move e os sistemas de alianças também. Colocar o Partido de Deus na lista anti-terrorista é lançar o país na guerra civil, o real objectivo dos falcões de Israel. Não é seguro que o desregular da presente situação não leve algumas comunidades a reclamarem a partição do país em Estados confessionais homogéneos. Precisamente, o que legitimaria a existência de Israel enquanto Estado judaico…