A Europa e o dilema francês
2005/04/16O tempo não volta para trás
2005/04/30Imagine, por um momento, a vitória do ‘não’
Diário de Notícias, Opinião
À esquerda, caíram durante estes meses todos os argumentos para ratificar o Tratado Constitucional, com excepção de um: chumbá-lo é pior que tê-lo.
Que é hiperliberal na economia, qualquer um sabe.
Que é guerreiro e entrega a defesa da Europa à NATO, também.
Mesmo em matéria de democracia e direitos, sem dificuldade um europeísta moderado reconhecerá que o texto é, no mínimo, coxo.
Por outras palavras se fosse para Portugal, nenhum socialista compraria uma tal Constituição. Nem mesmo um social-liberal.
Mas é da Europa e então se conclui diferente eis o acordo possível e mais vale este que nenhum. Depois de aprovado, mudar-se-á o que esteja pior. A Europa sempre foi assim – uma construção colectiva feita através de pequenos passos.
Será verdade?
Infelizmente, não é.
Este tratado não é um “pequeno passo”. É, isso sim, uma ruptura com a estratégia dos pequenos passos, um acto refundacional.
Este é o primeiro dos tratados que reclamam para si dimensão constitucional – e esta não é uma diferença meramente simbólica.
Não é a mesma coisa fixar num tratado entre Estados o conjunto da legislação europeia que configura a ordem económica liberal ou fixar tais escolhas políticas num texto constitucional.
Do mesmo modo, uma coisa é fixar em tratado uma arquitectura de poder ou blindá-la constitucionalmente. Principalmente quando essa arquitectura estabiliza um sistema de poder com dois únicos verdadeiros centros – o Banco Central Europeu (não eleito) e um Conselho Europeu de primeiros-ministros onde quatro põem e dispõem. Acresce que este poder só pode ser alterado por unanimidade de todos os Estados membros.
Trata-se de um poder extraordinário colocando a moeda e o controlo da inflação acima da economia, do trabalho e das instâncias da política, ele é uno e coeso para efeitos internos; mas dependendo da unanimidade do Conselho para a política externa, só existirá no mundo desde que acompanhe quem manda em Washington.
Não vos pergunto se esta é a Europa desejável. Pergunto simplesmente se esta é a Europa possível. E respondo pela negativa.
Se os cidadãos decidirem deixar de ser “consumidores” de Europa, outra será possível – a que os tem por actores. O ciclo de referendos é a oportunidade de dizer stop a uma construção europeia em velocidade de cruzeiro liberal e que se dissociou perigosamente das expectativas dos seus cidadãos.
Portanto… admitamos, por um momento, que vence o “não”.
Primeiro acto: as elites entram em estado de choque. Em conclave sem fumo branco. Confesso que até pagava para ver. Mas, para lá deste exercício de distribuição da justiça, morrerá a Europa por causa disso? Claro que não. A construção europeia foi suficientemente longe para assinar a sua certidão de óbito. E é demasiado importante para que a estrada seja regressiva.
A questão relevante é outra: saberão as elites entender os sinais de França? Não e sim.
Não – sob o chumbo francês, os governos farão aquilo que melhor sabem: meter a cabeça na areia e fingir que nada ocorreu. Fá-lo-ão por exclusão de partes. Porque não podem, de imediato, renegociar o tratado – isso reabriria por todo o lado o processo de ratificação e muitos dos que o fizeram por via parlamentar teriam agora de enveredar pelos referendos. Por outro lado, faltar-lhes-á a coragem política para admitirem o óbvio: que este tratado morreu. Candidamente, vão dizer que prosseguem as ratificações e no fim se verá.
E sim – a primeira certeza do “não” é a suspensão das principais directivas da agenda liberal. Ninguém se atreverá a insistir no projecto de liberalização dos serviços (Bolkestein) ou na selvajaria do alargamento do horário máximo de trabalho para as 65 horas por semana. A Europa “de cima” jogará, por uns tempos, à defesa. E essa é a sua primeira boa notícia em muitos anos. Fá-lo-á, não por contrição. Mas porque, sendo cega, apostará ainda no isolamento de França no processo de ratificação.
Mas do “outro lado”, a partir de 30 de Maio o “não” terá muitos e muitos mais adeptos. Mesmos nas elites, serão muitos a dizer que a cegueira foi longe de mais. E é esta nova arrumação de forças que anunciará um tempo de refundação assente na democracia.
Se o “não” vencer, a Europa terá a sua Constituição. Outra, redigida por representantes eleitos para o efeito.
Menos do que isso, em pleno século XXI, não é admissível.