Os referendos e a política portuguesa
2005/04/09Imagine, por um momento, a vitória do ‘não’
2005/04/23A Europa e o dilema francês
Diário de Notícias, Opinião
O salão, com as suas colunas, veludos e doirados foi preparado para receber 80 jovens cuidadosamente seleccionados. Eles representariam, num directo televisivo, o “povo” no Palácio da República. O “povo do futuro”, o que mais teria a ganhar com a Constituição para a Europa. Durante duas horas, esse povo interrogou o Presidente. E suspeito que este não convenceu.
À mesma hora, no Zenith de Paris, os comunistas abriam a todas as sensibilidades do “não” de esquerda o meeting que tinham marcado para esse dia. Casa cheia para ouvir Marie George Buffet pelo PCF; Mélenchon, socialista; Besancenont, trotskista; Sarre, republicano de esquerda; Francine Bavay, verde; ou José Bové, Yves Salette e Nikonoff pelos movimentos sociais, entre três dezenas de oradores. E nestes, dois dos jovens que foram afastados da selecção de quantos se iriam encontrar com Chirac no grande salão…
A mês e meio dos votos, o objecto da polémica é um best-seller editorial e o debate é popular. Por cá, o tema é marginal. Mas desengane-se quem pense que assim continuará se o “não” vencer.
E pode vencer. Porque pode, Chirac entrou na liça, recebendo um povo seleccionado. E porque pode, preferiu esse número mediático a um debate com contraditório.
Sucede que o “número” com os jovens acabou por ser sintomático da ansiedade francesa. O que se viu foi um Presidente didáctico, mas à defesa. As perguntas acabaram por reflectir o profundo mal-estar que atinge a sociedade. À maioria das questões, Chirac respondeu com um “mas isso não tem nada que ver com a Constituição”. E nas outras, a sua preocupação foi pedir aos franceses que não tivessem medo do futuro. Poucos momentos televisivos ilustraram tão bem o divórcio entre as ansiedades populares e o discurso político dominante nas elites. Naquela sala estiveram, por momentos, dois mundos o “de cima”, paternal, transmissivo, explicando aos “de baixo” que a vida não corre assim tão mal e, com mais do mesmo, poderá ser melhor; e os “de baixo”, invocando a realidade das suas experiências de vida para duvidarem das promessas de papel. Chirac não conseguiu desfazer esta impressão. Nem conseguiu ser convicto na “missão impossível” que tinha: mostrar-se europeu de esquerda, “social”, quando o Presidente que a França conhece é o do liberalismo dentro de fronteiras. Chirac não conseguiu encontrar a “justa medida” desta equação. Porque ela, simplesmente, não existe.
A procissão ainda vai no adro. Mas as sondagens não enganam. O “sim” partiu com 40 pontos de avanço. Mas os últimos 15 estudos dão, consistentemente, entre 51 e 55 por cento ao “não”. Mais significativa é a sua decomposição geracional o “sim” só ganha entre os muito jovens e os mais idosos. No meio, nas idades do emprego, ganha o “não”. E este cresce à medida que aumenta a insegurança no trabalho. Diferentemente do referendo de Maastricht, o que pesa são as razões sociais e não as da grandeza perdida da França. E mesmo onde estas duas pulsões se cruzam, o discurso dominante que exprime o mal-estar, não é a saudade de Joana d’Arc ou os malefícios da imigração, mas a defesa dos serviços públicos “à francesa”. Por outras palavras, o que decide o referendo não é a Turquia, mas a directiva da liberalização dos serviços no espaço europeu – usando jargão eurocrata, a “harmonização” por cima ou por baixo.
Neste momento, o “sim” resume-se a dois argumentos fortes: o “não” representa a incerteza e o enfraquecimento da França na União. Todas as outras razões – que o tratado, por exemplo, salvaguarda o modelo social europeu – pura e simplesmente não colam à vida. Eis, então, o paradoxo: tendo que combater a ansiedade social do presente, o “sim” acaba a pedir um voto de medo, pela negativa; e devendo afirmar o seu europeísmo, esgota-se num nacionalismo quase provinciano.
A percentagem de indecisos é ainda grande. O “sim” oferece um cenário que se conhece, mas não se deseja; o “não” propõe um horizonte incerto contra a perpetuação do presente. Num país de tradição submissa, o resultado seria simples. Mas a França levanta periodicamente o seu inconformismo. Pode acontecer o que os líderes europeus mais receiam – terem que pensar no dia seguinte…
A cegueira de Bruxelas pode ter, a 30 de Maio, encontro com o destino. Ou percebe que muito tem que mudar, nem que seja para que os mesmos continuem a mandar; ou finge que nada aconteceu e contaminará de inconformismo francês toda a Europa “de baixo”. A “incerteza” do “não” são duas magníficas certezas: a travagem do plano liberal e um extraordinário sobressalto democrático. Numa palavra, a transformação dos “consumidores” de Europa em protagonistas da sua refundação.