O elogio do sacrifício
2005/04/02A Europa e o dilema francês
2005/04/16Os referendos e a política portuguesa
Diário de Notícias, Opinião
Portugal tem dois referendos para realizar. Um sobre a descriminalização do aborto e outro sobre o Tratado Constitucional para a União Europeia.
No caso do Tratado europeu está em jogo uma discussão de mérito e ainda o resgate de um direito sonegado aos portugueses. Com efeito, nem a adesão nem o Tratado de Maastricht foram referendados. Quanto ao novo tratado, PS e PSD não quiseram aproveitar a última revisão constitucional para resolver o que já então se anunciava como inevitável – o referendo. Em consequência, inventaram uma pergunta tão esdrúxula que ficou órfã de criador e o Tribunal Constitucional chumbou. Agora, os dois partidos do “bloco central” europeu, receando um resultado à espanhola (se não pior), preparam novo episódio: a simultaneidade desta consulta com as autárquicas. Receando que uma pesadíssima abstenção possa revelar, em toda a extensão, o divórcio existente entre os cidadãos e as instituições europeias, mergulham de novo na asneira.
Em política, o medo nunca é bom conselheiro. Todas as pessoas de bom senso sabem que a simultaneidade de actos não é sábia. Uma questão particular pode sobredeterminar uma avaliação política global; ou, inversamente, esta última pode invadir a discussão de méritos na pergunta referendária. A prudência recomendaria, portanto, que não se mexesse na única coisa que está bem – a lei do referendo…
Conscientes da asneira, PS e PSD querem minorá-la. Admitem apenas a simultaneidade com eleições autárquicas, as “menos contamináveis”. Verdade? Inconsistência. Em Setembro e Outubro, andarão cem cães a um osso esfalfando-se em promessas. Aparelhos e líderes locais só pensarão numa coisa – na fatia de poder que o povo lhes dará. Da Europa só quererão que se conheçam as promessas que candidatarão a fundos comunitários, e nem isso é seguro. Tudo o que se intrometa nesta feira “desinteressada”, é “ruído”…
Com autárquicas, não há risco de contaminação, apenas certeza de embuste. De Europa teremos uma campanha clandestina e uma proposta desonesta ao povo: já que vais às urnas, vota “também” sobre o que desconheces.
Esta simultaneidade é a que mais diminui a dignidade do nosso debate europeu. Quem admita a simultaneidade de actos – e se reivindique europeísta – deveria sustentar que ela ocorresse com as presidenciais e não com as autárquicas. Na eleição presidencial discute-se o futuro de Portugal na Europa e o de ambos no mundo. Neste caso, a contaminação existe, mas não perverte os resultados, porque o referendo se dirige ao âmago da própria eleição. O povo não iria ao engano. Parece óbvio, mas as elites da trapalhada não colocam sequer a hipótese. Para as presidenciais, já valem os argumentos contra a simultaneidade. Aqueles que se esquecem para as autárquicas…
Mas a procissão ainda vai no adro. Marques Mendes começa com um bluff sem trunfos na manga. Diz que o referendo europeu é o prioritário e que se não for o primeiro, não o viabilizará depois. Vejamos: o País parte de um enorme atraso no debate sobre a Europa; apesar disso, as presidenciais colocarão Portugal a discutir a Europa; e, finalmente, o Tratado pode ser objecto de consulta até fins de 2006. A conclusão, para uma mediana inteligência, parece linear: o melhor momento para referendar o Tratado seria exactamente daqui a um ano. E até a incerteza sobre os resultados de França concorre para o argumento da prudência. Mas nada disto impressiona a sagacidade do sucessor de Santana Lopes.
Na realidade, o referendo europeu é um mero instrumento de outro objectivo uma vitória de secretaria sobre a vontade expressa pelo povo a 20 de Fevereiro. O que Marques Mendes realmente quer é que um outro compromisso eleitoral do PS – o referendo sobre a descriminalização do aborto – não siga em frente. Em troca do adiamento deste, o PSD apoiará o absurdo que Freitas do Amaral e Cavaco Silva já caucionaram e a que, agora, duas deputadas do PS dão forma de projecto de lei: que o aborto continue crime, mas não vá a tribunal. Depois da aprovação deste insólito, o PSD será contra qualquer novo referendo sobre o aborto. E aposta, singelo contra dobrado, que essa será também a vontade do próximo inquilino de Belém.
O truque é tão óbvio, que só cai quem quer. Mas se o PS for firme, o PSD não tem como evitar qualquer um dos referendos. Porque haveria a Europa de caber nas mãos de Marques Mendes, se nem nas de Durão Barroso?…