HAMBURGO O ensino a duas vozes
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Diário de Notícias, Opinião
Nas urnas foi a enterrar o Tratado Constitucional.
Com pompa e circunstância se o Conselho Europeu dos próximos dias 16 e 17 decidir que as opiniões públicas, desta, são para ouvir. Enterrando também as lideranças europeias, se o autismo conduzir ao prosseguimento do processo das ratificações.
O bom senso recomendaria caldos de galinha. Mas com Bruxelas nunca se sabe.
O papel dos analistas é, por vezes, terem de explicar o que não previam…
Vários associaram os resultados à impopularidade das políticas e dos políticos domésticos. A intenção, obviamente, foi desvalorizar a componente europeia do debate, aliviando a pressão sobre Bruxelas. Descontada a tentativa, há razões no argumento. Porque o voto dos eleitores também traduziu uma avaliação sobre as políticas e os políticos que têm tido. Nada mais normal. Nos 25 países, as políticas são basicamente as mesmas. Todos se subordinam ao mesmo Pacto, à mesma política monetária e às mesmas directivas e regulamentos. As diferenças existem, claro: níveis de desenvolvimento e aquisição de direitos muito distintos; nuances significativas na aplicação das políticas definidas em Bruxelas; e tradições e conjunturas políticas distintas. Mas, dito isto, é evidente que na França e na Holanda se julgaram as políticas comuns e os políticos caseiros que integram os conclaves de decisão europeia.
Os eleitores fizeram bem porque, em referendo, não estavam condenados à alternância. Portanto, aproveitaram.
Outros comentadores, constatando este facto, deduziram que os referendos não foram sobre o Tratado, mas sobre a crise. Claro que foram sobre a crise. E por isso sobre o Tratado. Na realidade, ele mais não é do que a tentativa de dar forma constitucional às políticas da década de Maastricht, acrescentando-lhes os ajustamentos institucionais julgados necessários por causa do alargamento da União. Os eleitores, que não são juristas, usaram a inteligência e perguntaram-se: vamos constitucionalizar o que a política destes anos nos tem dado? E responderam Não.
Como é óbvio, não disseram Não à Europa. Disseram Não a esta Europa liberal, pouco democrática e inexistente no plano mundial. Têm seguramente ideias muito diferentes sobre o que deve ser a Europa. Mas sabem que esta chegou ao fim do prazo de validade.
O voto francês e holandês exibiu o que Luís Salgado Matos chamou de fractura exposta “entre as elites e as massas” ou, mais prosaicamente, entre “patrícios e plebeus”. Correcto: na Europa, não há só uma questão democrática. Há, na outra face da moeda, a questão social. Não chega, por isso, arquivar a Constituição de Giscard d’Estaing. O próximo Conselho terá de enviar sinais de que entendeu o recado social dos votos. A agenda deveria ter fasquia alta: suspensão das propostas de directiva que liberalizam os serviços “por baixo” e esticam os horários de trabalho para patamares asiáticos; perspectivas financeiras para 2007/2013 que dêem aos países mais fracos as garantias de uma construção europeia solidária; colocar uma pedra na sobrevalorização do euro; libertar o investimento gerador de empregos e qualificações dos saldos que medem o défice; e, apaziguadas as almas, lançar as bases de um debate alargado sobre o futuro da Europa.
Para quem ainda não tenha entendido, o desafio é estar à altura da crise. Claro que há outra escolha: permitir o seu desenvolvimento larvar…
O debate sobre o futuro provocará realinhamentos e recomposições em profundidade. O Não de esquerda adquiriu novas responsabilidades. Obriga-se a transformar essa recusa em proposta política europeia e consistente. Do mesmo modo, a esquerda que tomou o tratado como um “mal menor”, ou o “possível” no jogo da realpolitik, faria bem em largar o cadáver e passar ao que conta: a elevação dos patamares de exigência que podem refundar a Europa sob bases democráticas, sociais e pacíficas.
Na esquerda, a mensagem das urnas foi claríssima: é tempo de acabar com a redução da política “ao que é possível”. Foi esse calculismo que aprisionou a Europa à tenaz das políticas liberais e dos egoísmos nacionais. Essa é a Europa que temos e que a maioria dos eleitores de esquerda não quis, e muito bem, constitucionalizar. Esse povo exige dos seus políticos bem mais do que eles lhes têm dado. Em particular, quer que os socialistas que sejam, ao menos, vagamente socialistas. Que, por exemplo, mal se discute o fim do segredo bancário, não fiquem à direita da direita…