Crise, evidência e esgotamento
2005/06/11A presidência americana da Europa
2005/06/24As cinzas dos heróis
Diário de Notícias, Opinião
O fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim estavam provavelmente inscritos nas estrelas. Mas em tempos onde poucos olhavam para o céu, ambos os factos foram antecipados por um álbum de banda desenhada.
Nas primeiras páginas de “A Caçada”, de Enki Bilal, um jovem historiador manifesta, a um velho professor, a sua admiração pela vida heróica de um dirigente soviético que viajava no mesmo comboio e que tinha participado na revolução de Outubro de 1917. O professor confirma a ocorrência sem deixar de lembrar que a história é um espelho fractal. E que o mesmo dirigente também tinha estado presente na repressão aos marinheiros do Kronstadt, na colectivização forçada da economia, na liquidação física dos proprietários de terra e no envio para os campos de trabalho de milhares de dissidentes.
Toda a história das revoluções do século XX está imersa nesta imensa contradição: o heroísmo da luta pela superação da opressão e a “mão de ferro” para tentar manter, a ferro e fogo, o aparelho de Estado conquistado.
Álvaro Cunhal cresceu e “forjou-se” nesse século XX: assistiu, muito jovem, à ascensão da ditadura em Portugal; esteve do lado republicano na guerra civil de Espanha; assistiu em Moscovo ao desenhar da política de frente popular de Dimitrov e, seguramente, os processos estalinistas dos anos 30 não lhe passaram ao lado; contemporizou com o pacto germano-soviético; sofreu com a ascensão do fascismo em toda a Europa; refundou o PCP e encabeçou o combate à ditadura; foi preso, torturado e fugiu da prisão; responde em seguida pela mudança do PCP em relação à questão colonial e imagina um país sem império, logo uma revolução democrática e nacional; justificará a invasão soviética da Checoslováquia antes de regressar no início da revolução de Abril. De então para cá, empenhar-se-á numa democracia com conteúdos socialistas e na luta contra a restauração do capitalismo; e nos anos 80 será incapaz de compreender a “perestroika” e tudo o que se lhe seguiu, com a queda da União Soviética.
Cunhal foi um herói do seu tempo. Transcendeu-se nas dificuldades da luta, mas nunca conseguiu escapar à dialéctica das “verdades instrumentais”. Não lhe era possível criticar os crimes do socialismo real, sem que pensasse estar a dar armas ao inimigo. E se falhou, não foi porque perdesse, mas porque transigiu com o silêncio e a omissão de democracia interna.
Para Cunhal, os “erros” eram legítimos à luz da luta por um ideal superior. Ainda hoje, os dirigentes do Partido Comunista, embora se sintam desconfortáveis com as ditaduras norte-coreana e chinesa, olham para o lado como se nada fosse. Ironia da história: aplicam, sem saberem, o principio da realpolitik que rege os seus próprios adversários. Exemplar a esse respeito é um pequeno episódio sobre as sanguinárias repúblicas das bananas instauradas pelos Estados Unidos: quando perguntaram ao presidente norte-americano Truman o que pensava do ditador nicaraguense Somoza, ele respondeu, sem hesitar, que “é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta!”.
Hoje, a esquerda sabe que os fins não justificam os meios; que nenhuma mentira ajuda à construção de uma sociedade emancipada; e que a liberdade começa em casa.
Álvaro Cunhal foi o mais marcante intelectual e político do nosso país no século passado, mas nem por isso deixou de ser um prisioneiro dos maniqueísmos do seu tempo. Morreu a resistir, quando resistir não é tudo. Parafraseando Marx, diria que os resistentes só sabem criticar o mundo, quando o que é preciso é transformá-lo. Mas fica o exemplo de uma convicção inquebrantável. Umas vezes fria, outras autêntico acto de fé. No enterro, foi esta última, a dimensão humana da religião laica que o comunismo também é, que sobreveio.
Há alguns anos, Álvaro Cunhal participou num debate com estudantes da Faculdade de Direito. Numa sala literalmente cheia, um estudante perguntou-lhe se depois de tantas derrotas, considerava que a vida tinha valido a pena. O dirigente comunista respondeu com uma história da mitologia grega. Falou de um homem a quem a adversidade tinha castigado duramente e que, revoltado com o destino e os deuses. disparou o seu arco contra o céu. A flecha subiu até se perder de vista. Quando caiu vinha manchada de sangue. Tinha atingido os deuses. Cunhal concluía a parábola explicando que quando tudo parece impossível, mesmo aí vale a pena. Esse exemplo é de todos os tempos e de todos os lugares. Em Cunhal foi o seu modo de vida.