Sem estados de graça
2005/07/23Terra queimada
2005/09/03Pelo buraco da agulha
Diário de Notícias, Opinião
Concluiu-se a retirada de Israel da Faixa de Gaza e a evacuação de quatro colonatos marginais na Cisjordânia.
O sucesso da acção nunca esteve em causa. A maioria da opinião israelita era favorável à iniciativa; sabia-se que o exército cumpriria sem defecções; e, do lado palestiniano, a oferta não podia ser recusada. Daniel Barenboim, durante a visita ao muro que antecedeu um histórico concerto da sua orquestra multinacional em Ramalah, sintetizou bem o problema: “a retirada é boa se for seguida de outras, é terrível se tal não suceder”.
As dúvidas incidem, todas, sobre o dia seguinte. E são muitas.
A opção de Ariel Sharom abriu fendas profundas na direita israelita. Uma competição duríssima, de resultado incerto, está em curso no partido Likud. A disputa induz às “compensações”. Depois da retirada, não é impossível a intensificação da presença militar na Cisjordânia e mesmo novas acções de colonização. Seria absurdo, mas essa é a lógica dos que sustêm o actual homem forte de Israel. Para António Ribeiro Ferreira, que no DN traduz, cristalino, esse tipo de posição, é simples: “A partir de agora não há lugar para mais recuos. Israel fica na Cisjordânia e na sua capital, Jerusalém”. E insiste: “A partir de agora, mais do que nunca, Israel tratará o terrorismo de forma implacável”. Como se até aqui tivesse sido a feijões…
No Público, um historiador israelita, Tom Segev, explica o ponto de vista da retirada: “Sharom é um militar. Ele olha para o mapa, vê uma fronteira que não pode defender, e sai. Não temos aqui um estadista (…), esse não é o seu modo de pensar. É tudo unilateral, é uma forma de pensar militar, táctica”. Se ele tem razão – e creio que tem -, então não há motivos para optimismo.
Ainda no mesmo jornal, o escritor israelita Amos Oz, comentando o modo como decorreram as evacuações, coloca outra questão crucial: “Houve muita fúria e ruído, mas não massacre. Mas será assim quando chegar a altura de desistir da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, em troca da paz com os palestinianos?”. Esta é, de facto, uma das grandes interrogações de amanhã. Mas exige outra que lhe é prévia: estarão os dirigentes israelitas preparados para chegarem a essa dúvida? Likud e Partido Trabalhista estão preparados? Por vontade própria, não estão. Empurrados pela comunidade internacional, pelos palestinianos, e pela maioria do seu próprio povo, talvez. Mas com tanta condicionante, já se vê que não será fácil.
Do lado palestiniano as opções também não são simples.
Não se percebe o drama que cresce em Gaza sem conhecer aquela língua de terra onde vivem mais de um milhão e trezentos mil palestinianos. Sobrelotada, sem qualquer viabilidade económica enquanto não se puder abrir ao exterior, mal administrada, e presa dos mais variados bandos armados, é uma imensa prisão de deserdados. O desemprego atinge metade da população activa. A única actividade económica digna de registo é a construção civil. O resto depende das empresas israelitas, que importam a conta gotas e fixando os preços. A corrupção, nestas circunstâncias, é endémica, o que ajuda a explicar a esmagadora vitória do Hamas nas recentes eleições locais. Mesmo a possibilidade de pescar, ou abrir um aeroporto, marcam passo atrás das imposições securitárias de Israel. O preço da evacuação dos colonatos é, portanto, o gueto. Por isso, o presente é envenenado. Mas as forças políticas palestinianas não podiam recusar a oferta dos carcereiros.
De momento, há “tréguas”. Elas podem, ou não, ser prolongadas até às legislativas que em Janeiro de 2006 encerram o ciclo eleitoral pós Arafat. Em parte, as tréguas dependem de Israel – se retoma ou não a colonização na Cisjordânia. Mas dependem também da lei eleitoral que o moribundo Conselho Nacional Palestiniano, o parlamento ainda em exercício, aprovar. Se for feita por medida para a Fatah, o partido do Presidente Abu Mazen, não é certo que o Hamas concorra; e as esquerdas laicas não conseguirão abrir caminho entre os dois colossos da política palestiniana. O dilema é difícil para Abu Mazen. Ele quer os fundamentalistas nas instituições, mas sente-se “obrigado” a defender o sistema de interesses que a Autoridade Nacional Palestiniana abriga. Uma escolha errada levará a nova vaga de militarização da resistência. É o que sucede sempre que os horizontes se turvam.