Integração dos imigrantes na Europa, através de escolas e de um ensino multilingues
2005/10/12Debate do relatório do Deputado Vasco Graça Moura sobre o programa «Cultura 2007»
2005/10/24A justiça como encenação
A forca é demasiado doce para Saddam”, jura uma jovem coberta, que se apresenta como irmã de um dos supliciados naquele trágico mês de Julho de 1982, na cidade de Dujail. Para ela, muito compreensivelmente, Saddam deveria “ser cortado em pedaços e entregue aos tigres do zoológico de Bagdad”.
Pelo contrário, um dos iraquianos que assistem, na TV, à primeira sessão do julgamento, reage ao enviado especial do Le Monde “Dê- -me o nome de um só país árabe onde os opositores não sejam sistematicamente eliminados. A tortura? Praticam-na todos. E os americanos também, em Abu Ghraib”. Não se pode dizer que falte à verdade?
Nestes fragmentos, dois iraquianos sintetizam a tenaz que se abate sobre o julgamento do ex-ditador. A jovem não quer justiça, mas vingança. E o jovem pretende absolvição sem justiça. Justiça, ou seja, apuramento da verdade e das suas circunstâncias e responsabilidades, é que ninguém, por ali, deseja.
As contradições revelaram-se, logo, no primeiro dia dos trabalhos. O acusador público, em vez de se cingir ao caso em apreço – o único massacre devidamente documentado, na opinião de juristas que acompanharam, desde o início, a preparação do processo -, foi levado pelo entusiasmo, e acusou o ditador de ser “responsável por dois milhões de mortos em 25 anos”. Saddam deve ter sorrido. Fosse esta a acusação, e o banco dos réus não teria espaço para os ditos. Esses dois milhões de vítimas pesam na consciência não apenas do regime iraquiano, co- mo no de Teerão, e ainda nas chancelarias ocidentais. Talvez por is- so o juiz tenha reconduzido a deriva do acusador ao único caso em apreço?
Há dias, a Arte exibiu um longo documentário sobre os bastidores deste julgamento. Ouviu todos. O especialista de direito internacional que esteve na génese deste tribunal especial, e que depois se afastou; o responsável pela formação que os acusadores receberam fora do Iraque; o responsável norte-ameri-cano no terreno, que acompanhou tudo, da preparação da sala de audiências à investigação no terreno; juízes e acusadores, sem qualquer experiência em direito penal; testemunhas de um dos crimes que irão ao segundo julgamento; e a equipa da defesa, entretanto despedida pela filha do ditador. É um documento. Devia passar na TV portuguesa, para explicar como não se deve fazer justiça.
Atenção Saddam merece ser julgado por crimes contra a humanidade. A questão é “como”. No Iraque, que confirmou a pena de morte? Num tribunal nacional, prepara- do e instruído por norte-americanos? Com juízes de direito comercial e acusadores com experiência em pequenos crimes domésticos? Com uma defesa sem tempo e sem aces-so ao cliente? Enfim, a lista de incongruências deste tribunal é in-terminável. Mas todas as pergun- tas vão dar a uma única: porque não um tribunal internacional penal?
Numa entrevista ao Libération, Cheril Bassiouni, professor em Chicago e presidente do International Human Rights Institute, reconhece que “as impressões digitais dos americanos estão agora por todo o lado”. Ele foi o responsável pela ideia deste Tribunal Especial. Mas não queria esta encenação da justiça. Queria, vá-se lá saber porquê, um tribunal que se parecesse com um tri- bunal. Só não era internacional porque o ocupante não reconhece tal tipo de instituição.
Washington quis um julgamento onde o réu não tivesse latitude para puxar das suas memórias. Onde não possa lembrar os seus apertos de mãos a Rumsfield e a tantos outros, que, nos idos de 80, lhe venderam armas e compraram petróleo.
Assim, o ditador será enforcado pelo massacre de pessoas em Dujail. Mas nunca pela sua responsabilidade na guerra Irão/Iraque, e o seu milhão de vítimas. Porque esta guerra inculpa o Ocidente e as suas empresas de armamento. O ditador também não será enforcado pelo modo como reprimiu os xiitas do Sul, após a derrota na Guerra do Golfo. Porque essa repressão se fez à vista de um exército norte-americano que virou costas ao drama humano que então se vivia. E muito menos será condenado por um dia ter invadido o Koweit. Fosse esta a acusação, e o réu ainda se podia lembrar das conversas mantidas com o embaixador dos EUA em Bagdad, nos meses que antecederam a invasão? Num mundo de mentiras, não é em Bagdad que esta se revelará.