Aldrabice
2005/11/25Tortura? Eles são lá capazes!
2005/12/10O outsorcing
Diário de Notícias, Opinião
1. Reuniram-se os ministros da Justiça em Bruxelas. Garante o nosso representante, António Costa, que analisaram uma “proposta muito interessante” da comissão Barroso sobre política de imigração. A crer no noticiário, a UE debruça-se agora sobre “uma visão integrada e global” do problema, que inclui o combate à imigração ilegal, “canais de imigração legal” e “o entendimento de que a imigração é uma fonte de enriquecimento social e cultural da Europa”. Um cândido diria estarmos no “bom caminho”.
2. Não estamos. Em nenhum outro domínio, a política europeia se revela tão cínica como em matéria de imigração. Vamos aos factos.
Entre Janeiro e Setembro de 2004, segundo declarações de Rui Marques ao DN, foram concedidos 164 vistos de imigração legal pelo nosso país. 164! Uma lágrima na quota de 8 mil e 500 autorizações para imigração legal, definidas pelo anterior governo, com base numa estimativa de trabalho destinada a novos imigrantes, que rondaria 30 mil vagas… Esta é a política real. Uma vergonha. E um absurdo. No mesmo dossier, Maria Ioannis Baganha, investigadora, admitia que estivessem a sair do país 40 mil a 80 mil portugueses por ano…
Espanha e Itália são mais finos. Uns e outros preferem seleccionar de acordo com a cor da pele. Da América Latina e dos países do Leste Europeu chegam anualmente 150 mil imigrantes legais aos dois países. De África, zero.
Imigração à la carte, é também o que a França de Villepin e Sarkozy se prepara para fazer em grande escala. Este país recebia, anualmente, cem mil imigrantes ao abrigo das disposições sobre reagrupamento familiar e direito de asilo. É precisamente sobre estes vectores que o governo aperta agora a torneira.
A “nova abordagem” introduz apenas uma variante: que o Mediterrâneo possa ser franqueado por quem tenha formação universitária. Ou seja, que a UE agarre os cérebros do Sul, na exacta medida em que perde os seus para os EUA…
3. Há meses, os acontecimentos de Melilla indignaram, e bem, a opinião pública. Segundo a direita, a culpa seria de Zapatero, porque este decidira proceder à regularização de 800 mil clandestinos. Não existe qualquer relação de causa e efeito. A imigração da África subsariana até à costa sul do Mediterrâneo demora meses e, em muitos casos, um a dois anos. Não obedece a notícias de jornais e televisões.
A tragédia teve razões bem mais prosaicas – policiais. A criação, na Andaluzia, do Serviço Integrado de Vigilância Exterior – SIVE – alterou radicalmente as condições de passagem no estreito de Gibraltar. Este investimento de 208 milhões de euros começou a funcionar em larga escala no ano passado. A sua eficácia é aferida pelas estatísticas. As detenções nas águas do estreito de Gibraltar passaram, entre 2000 e 2004, de 16.885 para 7.425. Este ano, o sistema funcionou ainda melhor. As patrulhas marítimas passaram a contar com novos meios de detecção nocturna, o contributo de novos países (Portugal incluído) e um substancial reforço de pessoal. Por outras palavras, o Mediterrâneo fechou-se, quer aos legais, quer aos ilegais. Não há qualquer nova e súbita pressão subsariana nas costas do Magreb.
A sobreconcentração de sem-papéis em Melilla é a consequência de uma combinação malvada: o fecho do mar pela Europa, e o reforço da acção policial por Marrocos, que se acentuou em 2005, obrigando alguns milhares de sem-papéis que se encontravam nas cercanias de Tanger e Ceuta a deslocarem-se para Melilla.
Marrocos depositou centenas de desgraçados no deserto do Sara, sem água nem alimentos. Mas a Europa sabia. Sempre soube como Marrocos e a Líbia tratam os sem-papéis – como lhes convém, e sem qualquer respeito pela dignidade humana. Apesar disso, a Espanha não hesitou em entregar a Marrocos centenas de desgraçados que faziam pela vida.
4. A “interessante” abordagem de Bruxelas já existe: evitar que haja quem se deite ao mar. Evitar que sejamos nós a detê-los, que não é bonito. E garantir que seja o Sul a policiar as nossas fronteiras nos países deles. Marrocos recebeu 40 milhões de euros para reequipar a sua polícia com radares, sistemas de comunicações e material circulante. A Argélia 10 milhões. E a Líbia entrou no clube dos países “amigos” a troco de iguarias similares. Chama-se a isto outsorcing.
Há alternativas a este desprezo pela condição humana. Elas estarão em debate na próxima sexta e sábado num colóquio internacional que se realiza na Torre do Tombo, reunindo especialistas e actores sociais de vários quadrantes de opinião.