ANÁLISE. E no entanto… ela move-se
2006/04/01DESLOCALIZAÇÕES NA AGENDA EUROPEIA.
2006/07/05Reescrever a História? Debate sobre o Programa «Cidadãos para a Europa»
SESSÃO PLENÁRIA DE 04.04.06
Debate sobre o Programa «Cidadãos para a Europa»
Intervenção de Miguel Portas
Senhor Presidente:
Comecemos pelo nome do Programa em discussão: Cidadãos pela Europa ou Europa pelos Cidadãos? A diferença não é o resultado de um lapso da Comissão.
É consequência da cultura que domina as instituições europeias.
Essa Cultura não percebe que só haverá novos cidadãos pela Europa, quando esta deixar de alimentar, com as suas políticas, as fracturas sociais e identitárias no interior da União. Nenhum programa para a Cidadania resolve este divórcio. Mas se ele, desde o seu nome, for o reflexo do autismo, da surdez e da cegueira que mora “em cima”, então muito pior.
Por isso aplaudo a mudança no nome. Mas quero coerência com o que se anuncia. Insistirei, por isso, sobre três aspectos:
Em face da escassez de recursos – 235 milhões de euros se o Conselho não cortar ainda mais – há duas opções possíveis: ou se concentra o dinheiro em poucas acções de grande visibilidade; ou ele se distribui pelos projectos que promovem a cidadania europeia. O relator optou pelo compromisso, procurando melhorar a posição da segunda opção.
Eu teria sido bem mais radical. Nada tenho contra grandes eventos. Mas tenho tudo contra a mentira. A melhor virtude de um Programa para a Cidadania Europeia é o de ser executado pelas redes associativas que no terreno a alimentam. Qualquer desvio a esta opção, em contexto de escassez, perverte a própria ideia de Cidadania.
Por isso, não é sustentável a consignação de um montante substancial dos apoios a seis instituições – que agora são oito – sem concurso de qualquer tipo.
O procedimento normal em qualquer sociedade civilizada é a selecção dos projectos através de concursos transparentes. O contrário é a lei dos lobbies, dos arranjos e dos favores. Neste caso concreto, fizeram-se acordos de última hora para acomodar mais uma ou duas organizações. Não julgo os seus méritos. Critico, isso sim, a completa falta de mérito desta forma de atribuição de subsídios.
Definir princípios, abrir concursos públicos e, no fim, esperar que a isenção premeie o mérito dos concorrentes – eis o que seria uma elementar lição de cidadania europeia. Ou não será assim?
Ultimo aspecto:
O programa inclui um capítulo relativo à preservação da memória. Com a entrada dos novos países do leste, muito compreensivelmente nasceu a ideia de associar às vítimas do holocausto a memória das vítimas do estalinismo. Muito bem. Mas este alargamento do programa obriga a um terceiro – o que faça justiça à memória das vítimas do fascismo nos países do Sul da Europa.
A óptica da cidadania só pode ser uma: a do respeito pela dor das vítimas, dos seus familiares e descendentes. Outro critério não é possível.
Ainda hoje em Portugal, um movimento de cidadãos se tem de bater para evitar que a antiga sede central da polícia política da ditadura seja transformada num condomínio de luxo e não num museu.
Cada um traz consigo as suas memórias, é verdade. Mas é com elas, com todas elas, que se pode transformar o passado num factor de cidadania.
O fascismo, colega Truppel*, foi um dos totalitarismos que marcaram a Europa no século passado. Não pode ser cancelado ou arquivado da nossa História colectiva, só “porque o dinheiro não chega”…
* Truppel é uma deputada verde alemã, que sustentou no debate que apenas o nazismo e o estalinismo eram totalitarismos europeus. As outras ditaduras seriam, a seus olhos, fenómenos nacionais ou locais.
Na realidade, o argumento esconde outro, bem mais mesquinho. Como escasseiam as verbas, reescreve-se a História para que aquelas sejam aplicadas em modelo tão concentrado quanto possível.