Líbano: Quando os cedros tomam a palavra
2005/03/01Quando os tontos falam do que não conhecem
2005/03/12Menos que revolução e mais que viragem
Diário de Notícias, Opinião
No país dos cedros ocorre menos que uma revolução e mais que uma viragem. Três notas de interpretação
- Visto de fora, o Líbano tem sido, basicamente, um pedaço de terra à disposição de terceiros. A França traçou-lhe as fronteiras, elegeu os seus preferidos – os cristãos maronitas – e um dia teve que partir. Vê agora, na sucessão dos acontecimentos, a oportunidade de um “retorno”.
Os norte-americanos também se mexem. Com a reeleição de Bush, o Império quer agora unificar os poderes de ocidente e das elites árabes em nome da “democracia e da liberdade”. Os alvos da nova estratégia são o Irão e a Síria. E só por isso, o Líbano. Nesta terra, os EUA testam Damasco. E, em troca do realinhamento francês, darão a Chirac a incumbência libanesa.
- Alinhadas as cartas das potências clássicas, passe-se à Síria, ao Irão, à Arábia Saudita e a Israel. Para os primeiros, o Líbano faz parte da sua “zona de influência”. Historicamente, as populações misturaram-se e, a partir dos anos 50 – com a afirmação da ideia pan-árabe de um lado, e o nascimento de Israel por outro – a Síria nunca deixou de ter sólidos amigos em Beirute. Sucede que a todos aliciou e a todos traiu. Desde o início da guerra civil, ainda nos idos de 70, pensou apenas em si. Ainda hoje, aliás. Começou por apoiar as forças laicas e socializantes para depois se passar para o lado da burguesia maronita. Desferiu golpes fatais nos palestinianos e acariciou a emergência dos movimentos religiosos. Com o Irão, deu cobertura à ala militar do Hezbollah, a quem deixou as tarefas da guerra fronteiriça com Israel, um gesto que este Estado, de resto, apreciou. E em 1989, no fim de uma guerra de todos contra todos, consumou a tutela militar do Líbano. É vulgar ouvir sírios dizerem que o seu país foi para o do vizinho garantir o que estes se mostravam incapazes de fazer a paz. Infelizmente, não foi verdade. A Síria jogou na eternização da guerra até que o país lhe caísse nas mãos. E para que caísse, alinhou com os EUA e a Arábia Saudita na Guerra do Golfo. Exacto! No momento em que ao Koweit era restituída a sua soberania territorial, os EUA cobriam a tutela militar do Líbano. Como tanto mudou em 15 anos: os EUA dando a sua bênção ao fim da soberania libanesa em troca do alinhamento da Síria na “comunidade internacional”….
Com os outros actores, é mais simples: o Irão usa a comunidade xiita libanesa como protecção, a Oeste, contra as aventuras dos “novos cruzados”; Israel também joga na instabilidade do país – um Líbano dividido em comunidades de filiação religiosa, legitimaria o Estado confessional judaico; e a Arábia Saudita e todos os outros, incluindo os já referidos, pensam sobretudo em negócios no paraíso fiscal do Mediterrâneo.
- Finalmente, os próprios, os libaneses. Tolerantes e abertos em tempo de paz, temíveis e fanáticos na guerra. E todos, mas todos, atacados de complexo de inferioridade. Pelas razões antes descritas e porque organizados em comunidades de matriz religiosa. Os xiitas dão voz à inferioridade da pobreza ante os ricos dos “outros”; os maronitas receiam ser sufocados pela maioria islâmica; os sunitas invejam o modo como aqueles foram promovidos pela França; e, finalmente, os drusos e os palestinianos são minorias entre as minorias. O que é extraordinário é que ainda assim a nação se tenha levantado, aproveitando as circunstâncias de um assassínio não esclarecido – o do mais poderoso e controverso político libanês. Pouco importa que o crime tenha sido executado sobre quem melhor ilustrou as cleptocracias de Estado árabes. Rafic Hariri chegou a Beirute à sombra dos inesgotáveis recursos do rei saudita. Mas nem esse facto o impediu de colocar o Estado libanês ao serviço dos seus interesses privados. Durante anos, a Síria aceitou-o. Mas Rafic, sabedor das mudanças no “ar do tempo”, quis libertar-se da tutela de um país enviado para a gaveta do “eixo do mal”. Quem o matou? Ninguém sabe, mas foi por isso que se transformou no “mártir” de um levantamento pacífico e democrático pela restituição do Líbano aos seus cidadãos…
De momento, todos parecem de acordo. Até a Síria declara retirar em seis meses. Mas esta é uma história árabe. Os velhos hábitos vão insinuar-se no novo movimento. As lideranças da oposição acabarão por se conformar ao peso das divisões entre comunidades religiosas e à tentação da dependência ante “aliados” externos que nunca quiseram mais do que dividir para reinar. É uma pena, bem gostaria de me enganar.