A Comissão, a directiva e o Tratado
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2005/04/02Breviário de um nome de difícil pronúncia
Diário de Notícias, Opinião
Bolkestein: 70 mil manifestantes disseram, em Bruxelas, “Não” à liberalização do mercado de serviços com base no princípio do “país de origem”. Dias depois, as sondagens francesas davam, pela primeira vez, vantagem ao “Não” no referendo sobre a Constituição. Na origem dessa mudança encontra-se o medo da famosa directiva. Chirac pode, assim, obter do Conselho Europeu a promessa de uma revisão. Mas ela mais não é do que um compasso de espera.
O director do Instituto Hayeck explica, no Le Monde, o que está em jogo: “o código genético da controvérsia é o de que para retomar o crescimento, a União deve liberalizar os serviços; e para os liberalizar, não existe qualquer alternativa ao princípio do país de origem”. É mais que discutível. Mas a tese cala fundo nos pressupostos da ordem liberal que rege a União. Prossegue o ideólogo: “Há um elemento de verdade nos slogans tristes desta nação cansada (a França). A directiva ameaça directamente a gordura insustentável das aquisições sociais da Europa ocidental. As forças criadoras da concorrência que a directiva libertará, obrigarão a depurar as legislações, baixar os impostos que parasitam o trabalho, e diminuir as cargas sociais”. Portanto, “diminuição correlativa e inevitável das prestações sociais”. Com tanta franqueza, não há Chirac que valha aos defensores do “Sim”…
Vale, contudo, a pena colocar quatro breves questões sucessivas: 1. A criação de um mercado único de serviços é do interesse dos europeus? Sim. A crítica de esquerda à directiva não incide sobre o objectivo proclamado, mas sobre a lógica escondida que lhe preside. 2. Porque é que são os trabalhadores dos países centrais que mais contestam a directiva? Porque a perspectiva que ela abre é social e ambientalmente regressiva. E é isso que a torna, contra as primeiras aparências, igualmente penosa para os países da periferia europeia. Esses, entre os quais se encontra Portugal, têm interesse que as suas PME’s possam encontrar contratos fora do país. E que possam beneficiar da livre circulação de trabalhadores na Europa. Mas se o preço do novo mercado for o abate das aquisições sociais, a pressão para o nivelamento “por baixo” acabará igualmente por se fazer sentir nesses países. 3. O princípio do “país de origem” é o único que garante o mercado único? Não, mil vezes, não. A alternativa é a harmonização das diferentes legislações nacionais, eliminando entraves burocráticos e mil pequenos proteccionismos, sem tocar nas aquisições sociais. A alternativa é um acordo político mais denso, contra a lógica da concorrência pura, simples e sem quartel. Pode, por falta de vontade política, demorar mais tempo. Mas é o único modo decente de atingir o objectivo sem espezinhar as pessoas.
Revisão do Pacto: o Conselho Europeu procedeu também à revisão do Pacto de Estabilidade. Com um défice a caminhar para os 7 por cento, o novo governo respirou de alívio. A espada das indemnizações por incumprimento deixou de ser automática; e o tempo para entrar “na linha” foi dilatado. Para lá disto, não há razões para novos estados de alma. A revisão mantém o critério mãe do antigo Pacto: um défice que não distingue entre os diferentes tipos de despesa e investimento. E os Estados só ganham margens de liberdade se estiverem próximos dos famosos 3 por cento. Ou seja, a revisão introduz desculpabilizantes que colocam dentro da lei os grandes prevaricadores, mantendo sob tensão os países de menor poder negocial. O moribundo ressuscita pare se aplicar à la carte. Esta mudança não nos é indiferente, mas está muito longe do que seria necessário. Sobretudo, está a léguas do que alguma imprensa tem escrito, confundindo a revisão do PEC com a da Estratégia de Lisboa: que o investimento em inovação e tecnologia sairia para fora das contas de Bruxelas.
Por razões de urgência – tentar salvar o tratado do voto dos franceses – ou por adaptação às realidades – moderando a ortodoxia – a presidência luxemburguesa procura conter os ultra-liberais. É louvável, mas o melhorismo não chegará, sequer, à praia. Aliás, a partir de Julho é Londres quem dita as regras…
Parafraseando, o problema é genético: as políticas liberais não são reformáveis. Reformas sérias pressupõem uma crise de refundação. O sobressalto democrático da vitória do “Não” em pelo menos um dos referendos deste ano, não derrota apenas as políticas que estão na origem do descontentamento – abre a via que porá fim à cegueira dos “de cima” .