ISRAEL Mais complacência, não!
2006/03/15Reescrever a História? Debate sobre o Programa «Cidadãos para a Europa»
2006/04/04ANÁLISE. E no entanto… ela move-se
Onde se procede à análise das mais recentes notícias da Europa, entre Roma, Paris e Bruxelas. Antecipando tendências para os próximos meses.
Recebi outro dia um email mal encarado. Enfastiava-se com o facto da esquerda se entusiasmar com o fim do Contrato Primeiro Emprego em França e com a derrota de Berlusconi. Curiosamente, o internauta não era um daqueles jovens de direita radical que gastam o seu tempo destilando sobre a esquerda. É radical, mas situado no extremo oposto do espectro político. Ele acha que festejar a retirada de uma “lei menor”, quando Villepin e Sarkozy continuam a governar, é estúpido. E que é mal empregue uma garrafa de champanhe que celebre a derrota de Berlusconi, quando o vencedor é Prodi. O nosso amigo é um revolucionário que arquiva as pequenas alegrias com que a História nos brinda, enquanto não chega o “grande dia”. Terá razão?
A queda de Berlusconi vale bem uma missa
Pois, em Roma não nasceu o primeiro governo dos sovietes do século XXI. Nem sequer um governo reformista forte, clarificador. O equivalente histórico que mais se aproxima da futura maioria de centro-esquerda e esquerda, foi o governo italiano de 1948, no imediato pós-guerra. Essa experiência, como se sabe, durou pouco. Como é razoável admitir que esta não dure, na sua composição actual, o tempo de uma legislatura. Mas da resistência antifascista e da sua consequência, o governo de 48, resultou, em Itália, um mapa político no qual se afirmou a esquerda mais influente e promissora da Europa ocidental. No passado dia 9 de Abril, com outros protagonistas e plataformas, as duas Itálias formadas no século passado voltaram a encontrar-se. E não é o espectro de um ulterior fracasso que anula a leitura dos resultados: uma substancial alteração na relação de forças.
A queda de Berlusconi vale bem uma missa. Berlusconi não é “um dirigente da direita como os outros”, seja lá o que isso seja. Ele antecipa e ensaia um dos futuros possíveis para a política europeia e mundial – aquele onde a finança, o Estado e o espaço virtual se fundem numa só pessoa e para seu próprio benefício. O império de Berlusconi precisa do Estado para a sua perenidade. Como precisa de um partido de tipo unipessoal. Até Berlusconi, o Estado moderno cuidava dos interesses gerais do capital financeiro e, em função da pressão social e da relação de forças estabelecida nas urnas, era mais ou menos permeável aos interesses populares. Com Berlusconi, os interesses do capital financeiro passaram a confundir-se com os interesses particulares do primeiro-ministro, e o Estado passou a ser impermeável aos movimentos sociais. Dito de outro modo: entre a democracia e o homem forte da Itália dos últimos anos, existia um insanável conflito de interesses. Daquela, Berlusconi pretendia apenas os seus votos e porque deles não se podia libertar. Quando exigiu a recontagem de todos os votos – apesar de ter sido o seu ministro do Interior quem dirigiu as operações eleitorais -, ou quando reclamou uma “grande coligação” à alemã, o que o determinou foi a sua sobrevivência no poder, mesmo que para tivesse que subverter todas as regras do seu próprio jogo. Esta criatura nada deve à tradição europeia das direitas liberais. É de outra estirpe. Berlusconi é um produto moderníssimo da crise da política, uma mescla explosiva de ultra-liberalismo, populismo e uso do Estado em benefício pessoal.
O que melhor se lhe assemelha são as antigas burocracias de Leste reconvertidas ao capitalismo, que usam as posições oficiais que ocupam para acelerar os seus próprios processos de acumulação primitiva de capital.
Nas democracias da globalização capitalista, a privatização de sectores do Estado destina-se a abrir “novas zonas de lucro arrancadas aos serviços públicos e aos sistemas de segurança social”, como recentemente escreveu o insuspeito Michel Rocard. Em Itália, não é “apenas” este programa que está em causa. Em Itália, Berlusconi reinventa o Estado anterior ao Contrato Social do pós-guerra, amputado da separação de poderes, manipulado no espaço virtual e criminalizador das praças e das ruas. Evitar que ganhe asas, é da mais elementar sanidade mental. Celebrando a sua derrota como uma vitória democrática.
O dia seguinte é outra questão. A esquerda alternativa – que se reforçou nas urnas – ensaia em Itália um passo que noutros países, nomeadamente em França e no Brasil, esteve longe dos resultados esperados. A participação num governo de hegemonia de centro-esquerda, salvaguardando a autonomia dos movimentos sociais, é um exercício potencialmente esquizofrénico. Mas nem as experiências referidas são idênticas, nem a História é um processo de onde a aprendizagem se ausente obrigatoriamente. Para já, os movimentos sociais disporão de melhores condições para arrancar ao futuro governo os compromissos que estabeleceu com o eleitorado. Mais tarde se verá se foi o governo contaminado pelo conflito social, ou se foi este a sufocar na relação com o novo poder. Mas que os ares de Itália estão bem mais frescos e desanuviados, só um cego não vê.
Do valor do Não francês
Um governo permeável às reivindicações não é condição sine qua non da obtenção de vitórias. O movimento francês prova que estas podem ser arrancadas a um governo hostil – quando a alternativa de que este dispõe é ceder ou cair. Mas só excepcionalmente esta situação se proporciona. Por outro lado, as tradições de luta adquiridas ao longo de centenas de anos têm singularidades nacionais. A França é o país da revolução que inventou a democracia moderna; é ainda o país da Comuna e o da primeira frente popular; e é Maio de 68. Na França, a tradição é a dos embates frontais, mais do que a do Contrato Social negociado. Claro que tem o seu Contrato. Mas até nisso foi original: chegou a ele através da Frente Popular. Agora bate-se contra a sua subversão do modo que conhece – usando, para lá do voto, a rua, as ocupações e os bloqueios. Na verdade, a França é o único país da Europa onde todos os governos têm medo e respeito pela rua.
Isto não faz dos gauleses gente avessa às reformas, como gostam de teorizar os comentadores liberais. A França é simplesmente um país vacinado contra o receituário neo-liberal em voga.
Mas há mais: de 20 em 20 anos, os filhos dos pais das revoltas anteriores aprendem a democracia onde ela se revela como descoberta inesquecível. A França popular renasce, ciclicamente, na rua, e é aí que se formam as novas gerações. Claro que existem diferenças entre as crises de 1968, 1986 e 2006. Nostálgicos da revolução e cínicos arrependidos, dirão que boa só foi a primeira das datas; que a segunda e a terceira foram sindicais, materialistas e, no limite, egoístas e individualistas. É não perceber nada da vida nos momentos de convulsão. O “sê realista, exige o impossível” de 68, não deixou de ser uma aventura pelos lugares da individualidade na acção colectiva. Do mesmo modo, a aparente modéstia dos sonhos de 1986 e 2006 – a retirada de “leis menores” – não impediram o país de se reconhecer na acção dos seus jovens. Com uma novidade significativa neste último caso: o movimento organizado dos trabalhadores cedeu a primazia aos estudantes, e entre uns e outros estabeleceu-se uma aliança inter-geracional de proporções inéditas. Desvalorizar a vitória alcançada – quando os movimentos sociais carregam doses cavalares de derrotas e desmoralização – mais do que uma infantilidade, é sintoma de senilidade.
A Europa desorientada
Desde o choque do chumbo francês e holandês ao Tratado Constitucional, que as direitas europeias se dividem sobre o caminho a seguir. De momento, a tendência dominante é para não esticar a corda. A fractura exposta nos referendos refreou os entusiasmos dos círculos dirigentes europeus. Mais tarde, o empate nas eleições alemãs e a constituição de um governo de bloco central neste país, consolidou esta tendência de “liberalismo temperado”, de resto, hegemónica em Bruxelas. O primeiro sinal de desaceleração, foi o compromisso no projecto de Directiva para a liberalização dos serviços. Face à versão inicial, as alterações do PE e que a Comissão aceitou, são substantivas. Elas traduzem a cadeia de apertos em que Bruxelas se encontrava – pressionada por uma liderança sindical moderada que exigia resultados visíveis, sob pena de ficar refém dos sectores radicalizados que animaram o protesto laboral.
A divisão na direita francesa, ante a força do movimento anti-CPE, expressa outra dimensão desta novidade – a emergência do medo nas classes dirigentes. Há, de facto, uma tendência nova e pesada que atravessa a Europa. Revelada no movimento anti-guerra, consolidou-se nos últimos três anos no conflito social. Essa tendência começa a resolver a sua principal urgência – a obtenção de resultados palpáveis. Mas está ainda longe de ter tradução consistente na esfera política.
De momento, esta emergência dos “de baixo” induz o realinhamento centrista das políticas europeias e dos principais governos. Mas a força das “grandes coligações” é a sua fraqueza. Temperar o liberalismo é uma “missão impossível” que reduz a política aos mínimos que todos os governos possam subscrever. Dominante em Bruxelas, esta tendência pode ainda durar, apesar de traduzir, como nenhuma outra, o impasse europeu. Por isso, não se pode subestimar o potencial das direitas radicais e eurocépticas, que têm em G.W. Bush o seu referente externo. Reforçadas na Europa do Norte e no Leste, influenciam governos e fazem da política anti-imigrantes e do “choque de civilizações” a sua plataforma de identidade. Com o advento de um novo capítulo na guerra preventiva podem recuperar da derrota de Itália. Na Europa, estão em gestação realinhamentos de natureza tectónica. E há vulcões ainda em actividade…