“Sobre a Questão Antissemita”

intervenção de Miguel Vale de Almeida
“O Mediterrâneo entre pontes e margens. Representações do Outro e migrações”
24 de maio 2015, 16H00, Livraria Ler Devagar, LX Factory

Se colocarmos debaixo do chapéu de chuva da expressão “antissemitismo” todas as situações de drama social que o nosso conhecimento e o nosso imaginário convocam, não será difícil identificar a perseguição da Inquisição, os autos-da-fé (tragicamente uma das poucas palavras passadas do português para o inglês e outras línguas) e a expulsão dos portugueses e espanhóis judeus, os pogroms na Europa, especialmente no Leste, o caso Dreyfus (com o seu equivalente português no caso do capitão Barros Bastos), e a Shoa ou Holocausto. Hoje, e como o demonstram os vários documentos da Fundamental Rights Agency da União Europeia, os incidentes, crenças e atitudes antissemitas não parecem ter diminuído significativamente, considerando o peso diminuído das comunidades judaicas (a título de exemplo, e deixando de lado o surgimento de movimentos de extrema-direita, ou os ataques a pessoas, sinagogas e cemitérios, mais de 40% das respostas aos inquéritos realizados na Polónia e em Espanha subscrevem ideias como “os judeus têm demasiado poder nos negócios”, “são mais leais a Israel do que aos seus próprios países” ou “falam demasiado sobre o Holocausto”).

Neste arco temporal, que vai da incorporação dos judeus nas sociedades cristãs europeias da Idade Média – e nas ibéricas do pós-expulsão dos muçulmanos – até ao período atual de existência do estado de Israel e da situação dramática do povo palestiniano, passando pelos efeitos do iluminismo e dos nacionalismos europeus e pela cesura histórica do Holocausto, vemos simultaneamente a persistência de representações e práticas recorrentes no antissemitismo, e representações e práticas que o reformulam. Estas últimas constituem desafios à nossa visão ética e humanista e à construção de uma política verdadeiramente democrática; aquelas não o fazem menos, mas acrescentam o espanto e o mistério sobre o porquê do antissemitismo. O primeiro passo para uma tentativa de resposta tem a ver com isso: não existe uma “questão judaica” (como o formulou Marx, embora querendo ser neutro no uso da expressão, apesar de esta ter sido depois utilizada pelos antissemitismos políticos organizados) mas sim uma “questão antissemita”. Não se trata – e aí discordo de alguns aspetos da análise de Arendt, de nos perguntarmos “o que há com os judeus que suscita o antissemitismo” mas sim “o que há com os contextos sociais onde ele surge que faz com que ele surja”.

Não vou entrar pela análise do pensamento crítico sobre o antissemitismo, tal como levado a cabo pelos já referidos Marx e Arendt, ou por Horkheimer e Adorno, Lyotard ou Bauman. Nem pela análise dos dados estatísticos antes referidos. Estes são fulcrais para demonstrar a factualidade do antissemitismo – e peço-vos apenas que acreditem que assim é; e aqueles são fundamentais para perceber a radical transformação das condições do antissemitismo que se deu com os nacionalismos europeus do século 19, com o surgimento do sionismo, e com o culminar no trauma histórico do Holocausto – é no seguimento desta concatenação Moderna que o antissemitismo contemporâneo se articula. Prefiro contribuir com uma visão antropológica que me parece faltar sobremaneira, complementada por uma visão de economia-política e de articulação da política da identidade à escala global.

Correndo o risco de cair numa aparente contradição com o acima dito, preciso de fazer a pergunta: o que é que as sociedades europeias, de fundo cristão e, depois, iluminista – atualizando-se tanto como capitalistas quanto como socialistas – viram ou veem nos judeus que as faz justificar o antissemitismo? Ou, perguntado de outro modo, o que caracteriza o ideal-tipo daquelas sociedades?

Em primeiro lugar, e cronologicamente, a diferença religiosa. O primeiro antissemitismo é essencialmente religioso, segundo os manuais, e isso em sociedades onde ou a diferença religiosa havia sido literalmente expulsa (o Islão), ou era inexistente, ou se criou por cisão interna apenas (protestantismo versus catolicismo). Mas a religião não pode ser vista, para aquela época, como uma esfera separada do cívico e nacional, mas antes integrante e integradora – cultura, portanto. Que o judeu é construído como o Outro Dentro é claríssimo.

Essa diferença – transformada em desigualdade – é também étnica. No sentido estrito de etnicidade. Isto é, os judeus eram simultaneamente empurrados para a endogamia de grupo, e protegiam-se praticando-a. A enorme dificuldade, ainda hoje, em classificar o universo judeu como “religião” ou como “etnia”, e os conflitos que isso gera, mostram, aliás, não só como essas distinções são absurdas, como mostram o problema que os estados-nação europeus “viram” nos “seus” judeus”: o que, numa linguagem que eriçaria os pelos dos meus colegas antropólogos, poderíamos chamar de “sociedade tribal”: uma etnia (um povo constituído por parentesco alargado e uma história genealógica comum) com uma religião apenas sua enquanto um dos seus traços de identidade cultural, e uma religião não prosélita. Isto tanto desafiou o universalismo monárquico e papal cristão, como desafiou o especifismo dos estados-nação da idealizada coincidência entre estado, território, povo e língua, com a religião remetida para o foro privado. E o universalismo cidadão não soube dar conta disto.

Outra preocupação europeia, mais própria talvez da modernidade e dos nacionalismos, tem a ver com a perceção dos judeus como entidade etno-religiosa diaspórica e transeuropeia – e mesmo transnacional. A ideia de que um grupo, à partida coeso pelas razões apontadas (na realidade, percecionado como coeso), tem uma dupla fidelidade, ao país onde vive e aos “seus” noutro país. Não é por acaso que a própria noção de diáspora, antes dos usos e abusos que hoje se fazem dela, nasce colada ao único verdadeiro caso, o dos judeus.

Menos importante, a meu ver, e ao contrário das interpretações dos autores acima referidos, é a questão da suposta especialização profissional e económica. É verdade que as disposições cristãs obrigaram muitos judeus à ocupação do nicho financeiro e que os mecanismo da etnicidade a reproduziram. Mas a massa judia do shtetl rural e semi-rural da Europa do Leste ou a classe trabalhadora falante de iídiche ou a pequena-burguesia que tanto alimentou o movimento operário e socialista certamente não cabem nessa definição. Tal não impede que os mecanismos de acusação assentassem no argumento oligárquico. Aliás, pensemos no seguinte. Um outro povo alvo de perseguição e preconceito é o povo Roma, ou cigano. Igualmente grupo étnico, igualmente transfronteiriço, igualmente diferenciado cultural e linguisticamente – mas não religiosamente e certamente não com um dos seus segmentos especializado na finança (ainda que percepcionado como especializado, sim, no outro extremo da escala de valores da produção de valor, a marginalidade). Na mesma linha, poderíamos distinguir as perceções da diferença judaica das perceções das diferenças regionais ou nacionais dentro de um estado-nação, normalmente associadas à reinvidicação de território e autodeterminação.

Tentemos agora centrar-nos num período mais próximo. O surgimento dos nacionalismos e do ideal do estado-nação na Europa agudiza, por um lado, a perceção da diferença judaica como uma situação de pária e, por outro, incentiva ao processo de integração cidadã universalista. A tensão entre estas duas dinâmicas é sentida por judeus e não-judeus. O acesso á cidadania instala a desconfiança de que os judeus estariam a penetrar o sistema e suscita em muitos judeus o receio da perda da identidade etno-religiosa. O iluminismo judaico, a haskala, a separação entre ser culturalmente judeu ou ser religiosamente judeu, a adesão a movimentos transformadores das estruturas sociais, da ciência e do positivismo ao socialismo e comunismo, dão conta dessas tensões. Mas a crise dos estados-nação, dos nacionalismo, das economias nacionais e dos equilíbrios geopolíticos na Europa, conduz ao surgimento do que poderá ser classificado como o mais europeu dos produtos: o sionismo.

O sionismo surge como um movimento nacionalista entre judeus europeus asquenazitas, largamente secularizados, em que a narrativa religiosa da terra de origem, a Palestina, é uma fonte de inspiração histórica e genealógica não substancialmente diferente de outras (a Lusitânia, por exemplo, ou a ideia de um “Portugal” “ocupado pelos mouros”). Do lado das lideranças asquenazitas, o impulso é no sentido de resolver, com os materiais simbólicos da época, o problema do antissemitismo; do lado dos potentados europeus, o impulso é no sentido de resolver de vez a alteridade perturbadora dos judeus. Acontece que tudo isto é feito num período onde coexistem visões do ser humano, da sua historicidade, dos grupos sociais humanos, da diversidade global e da transformação social que juntam: o racionalismo positivista, o nacionalismo, o evolucionismo de inspiração darwiniana, o racismo dito científico, o colonialismo como instrumento fulcral da acumulação capitalista, as ideologias anticapitalistas do socialismo e do comunismo (não críticas do racismo e do colonialismo). E, acrescentaria, o orientalismo, no que diz respeito especificamente ao mundo levantino dos espólios otomanos que as potências europeias vão dividir entre si na sequência da primeira guerra mundial.

Tudo isto para dizer o quê? Que o movimento sionista, a colonização da Palestina antes e durante o mandato britânico e a criação do estado de Israel introduziram um novo contexto para o antissemitismo. Simultaneamente, o Holocausto, que é posterior ao início do sionismo e à colonização da Palestina por grupos de judeus do leste europeu de inspiração socialista, comunista e secular, viria dar força à reivindicação sionista, à vontade de reparação e justiça por parte dos europeus e, sem contradição, à sua vontade de resolver “a questão judaica”. Passados 50 anos – durante os quais, por um lado, se construiu um estado-nação à imagem e semelhança dos europeus consolidados há mais tempo e, por outro, tal aconteceu à custa da população palestiniana, expulsa, refugiada, secundarizada ou ocupada – as condições do antissemitismo são outras. E bem mais complexas.

Em primeiro lugar, temos a questão do conflito com o mundo árabe e muçulmano, e a naqba palestiniana e a ocupação. Isto é, se uma parte substancial do conflito entre “o ocidente” e o mundo “árabe-islâmico” se deve ao colonialismo europeu, uma parte específica e substancial deve-se ao problema israelo-palestiniano, parte daquele mas não resumível àquele. Em segundo lugar, temos a questão do anti-ocidentalismo, quer na sua versão anti-americanista, quer incluindo a Europa, a aliança entre Israel e os EUA, e a ambiguidade europeia face a Israel e Palestina, colocaram o estado judeu no centro dos modernos conflitos que alguns insistem em chamar de civilizações, mas que são político-económicos e geo-estratégicos, ancoram-se no colonialismo, e recorrem às três figuras de afastamento e suspeita que estamos a analisar aqui hoje: o colonizador e imperialista ocidental, o judeu, e o árabe-muçulmano. O terceiro elemento é o da distinção entre anti-sionismo e antissemitismo. Por um lado, é impossível pensar as manifestações antissemitas de hoje retirando-lhes completamente um mínimo de perceção da, ou contágio pela, questão Israel-Palestina.

Ou seja, é igualmente possível identificar antissemitismo em algumas manifestações anti-sionistas, e separar claramente antissemitismo de anti-sionismo. É esta possibilidade simultânea que torna tudo complicadíssimo, já que não somos todos intelectuais racionais escrevendo cuidadosamente na base de conceitos bem explicitados. Uma pergunta que nos poderia ajudar a sair do pântano seria: há elementos do “velho” antissemitismo presentes no atual, e inclusive no anti-sionismo? Factualmente, sim. Por exemplo, o lobby judaico, a conspiração internacional, a vaidade da noção de povo eleito, o exclusivismo étnico, a forma como a reação árabe a Israel foi pegar em narrativas antissemitas antigas, etc. Mas vão junto com elementos novos: colonialismo, apartheid, ocupação, militarismo, racismo anti-árabe, etc. Uma segunda pergunta, que nos pode ajudar a ir mais longe, seria: como olhar para os judeus hoje e para Israel a partir de dentro, para detetar diversidades (assumo o enviesamento, já que o mesmo poderia ser perguntado sobre outros atores, árabes, por exemplo; mas assumo-o, por razões pedagógicas e do tema da comunicação).

Em primeiro lugar, proponho que se distinga Israel, o estado e, se quiserem, a nação, da diáspora judaica. Esta já não é A condição do povo judeu e isso mudou a condição identitária diaspórica. Ser judeu, hoje, fora de Israel, significa, mesmo assim, ter de lidar com Israel e com a identificação com o país de origem e nacionalidade. Isso faz-se das três maneiras possíveis: recusando Israel como destino, abraçando Israel como destino, ou criando uma dupla identificação. E isto independentemente de posicionamentos político-ideológicos diferentes sobre os sionismos, no plural, e sobre a situação israelo-palestiniana – e sobre a percepção de antissemitismo (o velho e o novo, agora necessariamente sempre novo).

Em segundo lugar, proponho que se distingam sionismos. A própria formação do estado de Israel, e o seu desenvolvimento, é uma história de sionismos em competição e conflito. Do sionismo mais inspirado religiosamente e de direita, ao sionismo de esquerda do movimento socialista kibbutziano. E, hoje, à corrente do pós-sionismo, incorporadora do drama palestiniano e propositora de uma superação do sionismo.

Em terceiro lugar, proponho que se considerem as clivagens, conflitos e desigualdades no seio da sociedade israelita tal qual ela existe. Conflitos fortíssimos entre a hegemonia asquenazita europeia e a subalternidade sefardita e mizrahi (oriental); conflitos de classe; conflitos entre secularismo e influência do campo religioso; e conflitos em torno da resolução do conflito, da ocupação e do futuro político da “sobreposição” Israel/Palestina.

Em suma, ser judeu não é ser israelita, e ser israelita não é ser um racista militarista de direita. O mesmo princípio da diversidade e conflitualidade interna que se aplicava no passado, aplica-se hoje. Por força de razão, o preconceito ou a acusação recusa isto e não vê, hoje, o israelita estereotípico – militarista, carracundo, impiedoso, supremacista – como a figura de continuidade do judeu que era visto como o cobarde escondido, maquinando tramoias, envenenando poços, bebendo o sangue de crianças, mas sim como a continuação do judeu financeiro organizado em lobby étnico para a conquista subrreptícia do mundo, fosse através do capitalismo, fosse através do cosmopolitismo comunista ou intelectual.

Mas é a mesma coisa? Não é. Porque a realidade político-económica de Israel está aí. Se muito anti-sionismo perpetua o antissemitismo, nem todo o anti-sionismo é antissemita, assim como um judeu ou israelita crítico do sionismo ou pós-sionista não é um “self-hating Jew” como diriam os mais conservadores. No entanto, e para o que nos interessa, é certo que um dos elementos constituintes da trama euro-mediterrânica, esse mundo entrelaçado de pontes entre margens, de margens com margens internas, de pontes que ora se constroem ora se queimam – ou de gente atravessando o mar sem pontes – é o elemento da diáspora judaica. Iniciada com a implantação do império romano na Palestina e supostamente terminada, para os sionistas, com a criação do estado de Israel. Criação que iniciou uma nova diáspora, a palestiniana. A diáspora judaica foi sistematicamente perseguida, queimada em autos-da-fé, expulsa das suas casas e terras, disseminada vezes sem conta pela Europa e pelo Mediterrâneo, integrada ao mesmo tempo que suspeitada e, por fim, queimada e exterminada em fornos justificados pelo antissemitismo de cariz genético e racista que substituiu a sua formulação religioso-cultural anterior.

É uma triste ironia da História que agora representem para grande parte do mundo a figura de emissário do Ocidente imperialista e colonialista e a figura do exemplo por excelência da humilhação do mundo árabe. Mas é minha infeliz convicção que o antissemitismo (e o seu obverso, o filossemitismo e a sua especificação do pró-israelismo acrítico e romantizado) perdura, a par com o anti-arabismo e o anti-islamismo (assim como o racismo generalizado para com os povos de território colonizados, lá ou cá enquanto migrantes ou minorias) como uma “questão da Europa”. E isso aconteceria, suspeito, mesmo se um estado palestiniano viável fosse garantido, e mesmo se o estado de Israel se transmutasse num estado binacional israelo-palestiniano. Basta, para perceber isto, que pensem um pouco sobre os automatismos que se usam entre nós, aqui em Portugal quando, numa qualquer conversa entre “homens da rua”, se fala ou pensa sobre “judeus”, com ou sem Israel como um factor. Não é de judeus que se fala, é de “judeus” – uma representação e não uma realidade.