Cai a máscara
2004/10/28De novo a Turquia
Diário de Notícias – Opinião
Só o tempo dirá se não foi uma imprudência muito cara» – com esta presciência trágica, o meu vizinho de coluna e Parlamento, Vasco Graça Moura (VGM), resume a sua posição sobre o previsível início das negociações da União Europeia com a Turquia. O seu argumento constrói-se em dois passos: no primeiro, ele sustenta que a Turquia constitui uma «alteridade», um «outro» civilizacional e geográfico. Não é Europa, ponto. Num segundo momento, VGM situa-se na dimensão pragmática das relações de força que a entrada de tal gigante na União provocará nos equilíbrios actuais.
Qualquer dos aspectos merece reflexão, mas antes disso convém esclarecer que o artigo se constrói sobre pressupostos. Um, explícito, é o de que o mundo actual é atravessado por um choque de civilizações; outro, implícito, é o de que VGM vê a sua Europa à la Blair, ou seja, como puro arranjo de interesses entre nações soberanas. E neste modelo europeu de mínimos, a entrada da Turquia é, económica e politicamente, arriscadíssima. Feito o aviso, discuto nesta crónica o primeiro argumento, ficando o segundo para melhor ocasião.
Claro que a Turquia não é Europa – basta olhar para os mapas. Mas porque há-de ser a geografia a fronteira da política? Que se saiba, a União é uma construção política. Iniciou-se na Europa ocidental e estende-se hoje a leste. Porque não, amanhã, a sul e a «oriente», desde que os respectivos povos o desejem? Entre o tempo dos «pais fundadores» e os dias de hoje, não correram apenas 50 anos.
No entrementes, o mundo, para o pior e para o melhor, mudou vertiginosamente. E a União acompanha, mesmo que não saiba bem para onde.
Coloque-se a questão de outro modo: do que precisamos é de uma estratégia para tempos de incerteza. VGM é de outra opinião. Para ele, o mundo é o imenso palco de um «conflito civilizacional» entre as tradições judaico-cristãs e muçulmana. Em consequência, sustenta que a Europa se deve proteger dentro de portas. A ideia não é propriamente nova e, na economia de texto, dispenso a sua crítica. Deixo, contudo, duas observações:
A primeira é que o «outro» já cá mora, com ou sem Turquia. E continuará a entrar, com mais ou menos Schengen, porque a imigração não é um assunto de polícia. A opção «entram» ou «não entram» simplesmente não existe. Como queremos que entrem – esse é o debate com futuro e nele se cruza a «questão turca».
A segunda observação é de carácter histórico. O Mediterrâneo não é uma fronteira da Europa. Pelo contrário, foi a Europa antes desta alguma vez sonhar em o ser. Porque o sabe, VGM situa a escolha entre «o espaço do Império de Carlos V e o que tenderá a coincidir com a área do Império Romano». A imagem serve. Até porque o conflito actual não é entre «civilizações» de um mesmo livro (é bom não esquecer…), mas entre os fundamentalismos armados que dessa distinção se reclamam.
E é porque este choque pode degenerar num conflito de características civilizacionais que é urgente uma estratégia europeia que faça da paz não apenas um valor retórico, mas uma política prática.
A «questão turca», mais do que um problema, constitui uma oportunidade para uma construção europeia que lide com os «outros» cá dentro. Que lide consigo, como já é. É esta, aliás, a alteridade que nos desafia: a de uma Europa também «outra», que supere a subalternidade atlântica a que o novo Império a vem submetendo.