De novo a Turquia
2004/10/21A luta continua
2004/11/04Cai a máscara
Diário de Notícias – Opinião
Quando ontem, em Estrasburgo, Durão Barroso anunciou que retirava a sua proposta de Comissão Europeia, o lado esquerdo do plenário aplaudiu, ante o silêncio constrangido e envergonhado da direita parlamentar. Com o gesto, o presidente-da-comissão-que-não-chegou-a-ser apenas evitou o chumbo da sua equipa através do voto – algo impensável há três meses.
Devo dizer-vos que ontem pus gravata. O momento tinha solenidade, uma solenidade tão rara que justificava a excepção. Desde logo, porque no dia anterior à votação-que-não-chegou-a-existir o velho Durão Barroso que se conhece de Portugal ressuscitou. Na União Europeia não o conheciam. Durante os últimos três meses, ele alimentou «diálogo», «tolerância», «inteligência» e mesmo «sabedoria». A Comunicação Social europeia esqueceu-se, até, da sua presença na fotografia da guerra. Mesmo os cépticos admitiram que o homem era capaz de ser o que faltava à Europa. Mas quando chegou a primeira dificuldade séria não passou a prova. Até ao fim dos debates, Durão Barroso defendeu a sua contestada equipa de comissários. Recusou as mudanças minimais que o centro lhe pedia. E, no fim, quando era por demais evidente que estava por um fio, manteve a obstinação. Tinha – garantiu – analisado «racionalmente» todos os cenários, menos o de perder (acrescento eu)… Ao fim do dia, recebia resposta. Esquerda, verdes, socialistas e dois terços dos liberais confirmavam o voto contra a comissão e reuniam-se num projecto de rejeição único.
Na manhã de ontem, Durão Barroso já só tinha duas hipóteses: cair em nome da sua superior «racionalidade»; ou salvar a pele, reconhecendo que lhe sobrou em obstinação o que lhe faltara em «racionalidade». Escolheu a segunda para sobreviver. Mas já ninguém tem dúvidas sobre o autismo frio que o caracteriza. Em nome da transparência, é melhor assim.
Os acontecimentos contêm outras lições.
Ao contrário do que receava sexta-feira passada o director do Público, a Europa não se suicidou. Com dramatismo equivalente à sua prosélita campanha pela guerra no Iraque, José Manuel Fernandes escrevia que os deputados europeus «não têm um mandato idêntico ao dos deputados nacionais» e por isso não deviam chumbar uma comissão onde a margem de incompetentes apenas rivalizava com a de ultraconservadores. Se o fizessem, insistia o articulista, a Europa «cometeria hara-kiri». Agora que tudo se consumou e a Europa continua, vale a pena sustentar a tese contrária. O Parlamento, amputado do seu principal poder – o da iniciativa legislativa – decidiu existir. Por um dia decidiu existir, dando razão ao velho ditado «antes rainha por um dia que duquesa toda a vida». E esta, confesso, foi outra excelente razão para retirar a gravata da última gaveta do mais esquecido dos armários.
Há dois modos de olhar para o que aconteceu: como um conflito corporativo entre instituições de poder na UE; ou como acto constitutivo da responsabilidade democrática na única instituição que resulta dos votos. É assim que o vejo, mesmo sabendo que o Parlamento Europeu se não passou para a esquerda. A ausência de pressões fortes dos primeiros-ministros deveria fazer pensar Durão Barroso. Quando o indigitaram, bateram-se por ele. Agora não. Faz sentido? Faz. Na realidade, eles nunca quiseram uma Comissão Europeia forte. Nem ontem, nem hoje. Na terra dos cínicos, governam homens de um só olho. Por isso, que percam os três B – Barroso, Berlusconi e Buttiglione -, e se salve a confraria.