Diário de Notícias, Opinião
Se o mundo votasse, nem todo o dinheiro deste mundo chegaria para reeleger Bush. A eleição correu mal, podia ter corrido melhor, mas a luta continua.
O taxista afro-americano que me conduz do aeroporto a Nova Iorque diz que ainda não há resultados e que Bush ainda não ganhou. São 11 da manhã (6 da tarde em Portugal) e ele pode, legitimamente, iludir a realidade das projecções. Só acredita quando estiver tudo preto no branco e daí não sai. Gostaria que ele estivesse cheio de razão, mas não creio.
Teremos Bush por mais uns anos. Era o resultado mais provável, bem sei. Mas as últimas semanas de campanha deixavam uma ponta de esperança. Teria sido extraordinariamente importante demonstrar que o imperador podia ser derrotado no seu próprio país. A luta política faz-se com símbolos e esperanças, e a vitória de Kerry, sem trazer consigo uma ruptura na condução dos assuntos mundiais, teria aberto novos horizontes e possibilidades aos movimentos e opiniões públicas que reclamam essa mudança.
Numa eleição fortemente polarizada e participada, ganharia quem fosse mais claro.
De Bush pode dizer-se tudo, menos acusá-lo de ter tergiversado sobre o tema que decidia a eleição – a guerra.
Kerry, pelo contrário, pediu o voto da paz afirmando que, consigo, a guerra se podia dirigir melhor.
Complicado, pois. Mas nem por isso os democratas deixaram de obter o voto de quantas e quantos eram contra a guerra – o escassíssimo resultado de Ralph Nader ilustra a evidência. Mas faltou o suplemento de mobilização que só um voto pela positiva podia assegurar. E assim, o campo da paz perdeu por poucos, mas perdeu.
Há qualquer coisa de imoral nesta história. Afinal, o que se jogava dizia tanto respeito aos norte-americanos como ao resto do mundo.
E Bush ganhou porque só os norte-americanos puderam eleger o imperador. Se votassem palestinianos ou iraquianos, ele perdia pela certa. Se o mundo votasse, nem todo o dinheiro deste mundo chegaria para reeleger Bush.
Bem sei que isto é um desabafo provocatório. Mas é o que apetece dizer neste dia em que os norte-americanos apenas estiveram quase. Agora, pronto: correu mal, podia ter corrido melhor, mas a luta continua.
A luta continua em particular nos lugares da guerra, porque aí não há nada a esperar da reeleição, a não ser um esforço suplementar de Washington para envolver a Europa e o mundo árabe no vespeiro da guerra entre o Tigre e o Eufrates. Veremos como resistirão a esta operação.
Em terras de palestinianos e israelitas, o mundo pensa que há um conflito, mas não propriamente uma guerra. É um puro engano. Nos últimos quatro anos morreram mais de mil israelitas e quase quatro mil palestinianos. De ambos os lados, a esmagadora maioria das mortes são de civis. Parece pouco, mas é uma brutalidade para os universos populacionais em causa. Se se projectassem os mortos e feridos palestinianos para o total da população norte-americana, estaríamos ante 292 mil mortos e quatro milhões e meio de feridos. Cinco vezes mais do que as vítimas norte-americanas no Vietname.
A vitória de Bush não promete nada de bom quanto aos esforços para uma solução justa do conflito. Estive em Israel e na Palestina durante uma semana, numa delegação de deputados do Parlamento Europeu em visita não oficial. De Portugal esteve também a Ana Gomes e ambos daremos conta do que vimos e ouvimos amanhã à noite em Lisboa. A situação é bem pior do que por cá se possa imaginar e a relegitimação de Bush não contribui em nada para a tragédia em que a terra prometida continua mergulhada.