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Diário de Notícias, Opinião
No momento em que escrevo, o estado de saúde de João Paulo II é muito precário. O eclesiástico das más notícias já se encontra em Roma e, a 31 de Março, foram dados os últimos sacramentos. Mesmo que o Papa recupere momentaneamente, a doença de Parkinson avançou o suficiente para que o destino siga as leis da vida. Nesta circunstância, hesitei em escrever. Estas linhas serão sempre interpretadas como as de um texto fúnebre avant la lettre. Corro, no entanto, o risco. Porque é ainda em vida que posso escrever com franqueza sobre a ambivalência que a figura deste Papa me suscita.
Primeiro, o aviso como sabem, não sou cristão. Recorro a uma frase que Karol Wojtyla proferiu em Roma, na viragem do século: “Pela primeira vez na História da Humanidade, há um homem que vive como se Deus não existisse: o homem europeu.” Eu pertenço a esse homem. E no entanto a este homem nem João Paulo II nem o seu Deus são indiferentes.
Segundo, a advertência apesar de ateu, penso que a religião não é uma questão exclusiva do foro privado de cada um(a) dos seus praticantes. Deus – o deus que cada crente faz seu – é privado. Mas a religião é uma invenção humana. A mais perene e poderosa delas. Para o pior e o melhor, só pode existir no espaço público. A necessária separação entre Estado e religião não é a remissão desta última a qualquer “gineceu” dos tempos modernos. Por dois motivos sucessivos: porque pode a religião recuar entre o Homem, nomeadamente o europeu, mas nem por isso a religiosidade diminuir. E porque a religião é uma história milenar de poder. A importância de João Paulo II é, aliás, a que decorre de uma marcante intervenção no espaço público ao longo de um quarto de século. Marcante e coerente, acrescente-se.
A citação a que recorri define a preocupação central deste Papa. Dela decorre todo um programa evangélico e político. O fio invisível que liga o seu anticomunismo dos primórdios à actual recusa da guerra preventiva, é uma leitura preocupada e angustiada sobre os tempos modernos que prescindem de Deus. E é essa difícil relação com o processo de laicização das sociedades ao longo do século XX que igualmente explica o seu conservadorismo em matéria de hábitos. Ou a defesa das prerrogativas indevidas que a Igreja ainda mantém em muitos países.
As posições antiquadas que a instituição continua a ter sobre preservativo, aborto, escolha sexual ou até o lugar da mulher na própria Igreja não a ajudaram particularmente. Nem o facto de a hierarquia continuar a pensar que os critérios morais que reclama para os seus devem ter força de lei para todos.
Não partilho do diagnóstico. Não é a Igreja que está bem num mundo que piora. Ao contrário, julgo que a Igreja precisa de mudar para que o mundo melhore. Mas sei reconhecer a mudança onde existe. Em particular nos últimos anos, João Paulo II teve a coragem de desenvolver uma crítica sistemática da guerra. Chamou insistentemente a atenção para as injustiças geradas pela civilização individualista do capitalismo. Teve a lucidez de contrariar quantos queriam – e querem – levar o mundo para um real choque de tradições civilizacionais. E assumiu uma posição muito digna sobre os fenómenos da imigração, ao arrepio do cinismo das políticas dominantes. Este legado é inestimável. Porque ao longo da História da Igreja não foram muitos os Papas que puseram as pombas brancas a voar na Praça de São Pedro. Mais que o seu diagnóstico sofrido sobre a vida, conta o modo como se entregou ao seu mundo. Ele é “o incansável”. Mesmo na doença, e principalmente nela, assume, até ao último suspiro, o rosto do sacrifício. Há algo de “desumano” – ou “sobre-humano” – nestes dias finais, na voz que se esvai e na janela que fala, silenciosa.
Uma igreja mais gentil teria convencido o seu Papa à resignação. Mas a insistência deste é um epílogo que entendo – à altura do desafio que a si próprio se atribuiu. É o elo que, simbolicamente, une a sua missão ao momento fundador da tradição cristã. Que tal ocorra em plena quadra pascal apenas acrescenta força à obstinada vontade dos últimos dias. Respeito e admiração, portanto. Até no adeus foi consistente com a sua vida.