O dia seguinte
2005/05/25A Europa dos plebeus
2005/06/01A Europa depois da França
Diário de Notícias, Opinião
Escrevo de Bordéus, à saída do meeting final do Não de esquerda. Quatro mil pessoas escutaram as intervenções de 15 oradores, sem arredar pé, absorvendo os argumentos que as podem levar, ainda, aos últimos indecisos. Elas sentem que podem ganhar. E que ganharão se os que deixaram de votar por razões de exclusão social se levantarem domingo para dizerem que existem, que aí estão e que, desta, o seu peso se fará sentir. É nos pobres e nos desempregados que tudo agora se joga. E por isso escrevo na presunção de que a vitória do Não é o mais provável dos cenários.
No acto de Bordéus intervieram socialistas de esquerda, verdes, comunistas, esquerda radical e figuras dos movimentos sociais. Falaram ainda três “estrangeiros” – Paul Lannoye, belga e antigo líder dos verdes no Parlamento Europeu, um comité operário basco de uma fábrica há 19 meses em greve e eu próprio. Os organizadores quiseram mostrar que o seu Não é europeísta e que o debate é sobre o futuro da Europa. Mas nem seria preciso. O ar que se respirava era o dos momentos em que a História acontece. Ali, ninguém faltará ao encontro.
Coisa esquisita, esta do “fazer História”. Há, é claro, uma dimensão de castigo. O povo de esquerda quer a desforra sobre 15 anos de políticas liberais. Quer, também, ajustar contas com os que, em seu nome, se renderam à ordem liberal. E deseja, evidentemente, ver-se livre da direita que o governa sem esperar por 2007, o ano das presidenciais. Contudo, a política doméstica não é o motor da revolução silenciosa que está a nascer em França. A tenacidade do Não de esquerda, e o modo como literalmente apagou o Não soberanista, vem de longe e extravasa as fronteiras de França.
Começou por ser francesa a revolução que inventou a democracia moderna. Igualdade, Liberdade, Fraternidade, lembram-se? Precisamente o que não se descortina no arrazoado confuso e mal escrito de 448 artigos e dezenas de anexos, a que uns tontos atribuíram categoria constitucional.
Foi também francesa a Constituinte que inventou a separação de poderes e o controlo do executivo pelo Parlamento. Dois séculos mais tarde, nem Constituinte, nem observância dos princípios fundadores da democracia liberal. Como se a História regressasse ao século XVIII.
É verdade que o Não de esquerda é social. Grosso modo, dois terços dos activos são pelo Não, exactamente o inverso do que se passa com os inactivos. Mas, por detrás dele, há um resgate da dignidade que encontra as suas energias nos fundos esquecidos da democracia. Os franceses perceberam o que os portugueses apenas pressentem – que lhes deram um referendo para escolherem entre Sim e Sim. Não é um segredo de polichinelo. É o que o presidente em exercício da União veio esta semana explicar quando lhes disse que teriam de regressar às urnas, caso se enganassem no voto. Os de cima não percebem, nem quando cavam a sua sepultura…
Há uma Europa moribunda e rasante – a de hoje; e outra que nasce amanhã.
Não há “plano B”. Este tratado não é renegociável pela simples razão de que ninguém, “lá em cima”, deseja reabrir o pesadelo das ratificações. As lideranças só têm duas opções: fingirem que a França não existe e que a Holanda, três dias depois, muito menos; ou entenderem que chegou o momento de ouvir e acabarão por ter que abrir caminho a um processo constituinte democrático. Claro que podem arquivar o Tratado e viver uns tempos com o actual. Mas, mais cedo que tarde, terão que enfrentar a questão democrática na Europa.
Quem imporá a clarificação é o actor esquecido da Europa e que amanhã entra em cena: o povo.
Do Não francês chegar-se-á a um povo constituinte e multinacional: o mesmo que, contra a guerra anunciada no Iraque, se mobilizou por toda a Europa.
Sob o Não francês, um novo quadro político é inevitável. A base política e social do Não de esquerda vai crescer em todos os países; as razões profundas desse Não, aliadas à cegueira das lideranças europeias nos primeiros dias, terão eco entre os europeístas de esquerda que, por erro de cálculo ou momentâneo desacerto com a coragem, apostaram no campo perdedor. Um realinhamento clarificador e europeísta é inevitável à esquerda.
Do mesmo modo que é inevitável o realinhamento soberanista à direita. Porque a Europa do tratado já é a Europa dos governos e da competição de todos contra todos. E é contra esta Europa que se vai erguer a do programa democrático e social. As cartas lançam-se amanhã. Irá a jogo quem perceber.