A Europa da mercearia
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Sessão 23 junho 2005
Apresentação do programa da Presidência britânica da União
Quarta-feira, o Parlamento aplaudiu de pé Jean-Claude Juncker porque este “abriu o livro” contra Tony Blair, num inusitado exercício de franqueza política. Um dia depois, o mesmo Parlamento aclamou o homem que 24 horas antes fora frito no banco dos réus da crise europeia. Bruxelas tem em palmas o que lhe falta em espinha dorsal.
O retrato patético da crise
Tony Blair não tinha pela frente um dia fácil, a avaliar pelo apoio que as palavras duras de Jean-Claude Juncker tinham recebido do Plenário no dia anterior.
O presidente ainda em exercício arquivou a diplomacia e passou ao ataque. Explicou detalhadamente como se frustraram as negociações para um acordo sobre as Perspectivas Financeiras da União para o período de 2007/2013. E desmontou, argumento a argumento, a posição britânica. É verdade que para os críticos da proposta de acordo, a intervenção de despedida do primeiro-ministro luxemburguês, deitava para trás das costas a questão essencial do debate: a abissal desproporção entre os objectivos e os recursos previstos. Em consequência, a sua franqueza sabia a pouco. Equivalia mesmo a uma demissão da política no altar das discussões de mercearia. Este foi, de resto, o argumento que usei na minha intervenção.
Mas as palavras de Juncker, que para o fim adquiriram um tom confessional, tiveram pelo menos a virtude de pôr a nu os estados de alma no Conselho. De um lado, a maioria dos governos e a Comissão procurando insistir, quase pateticamente, na linha dos acordos mínimos que salvaguardem as aparências em contexto de crise; do outro, um bloco “nórdico” dirigido por Tony Blair que pensa ser chegada a altura das terapias de choque. Porque esta é a arrumação na Europa dos governos, é pelo menos surpreendente como os mesmos deputados, menos de 24 horas volvidas, aclamam o homem que antes colocaram no banco dos réus.
Tony Blair não se sentou no banco dos réus. Contra-atacou. Expôs, sem concessões, a sua visão da Europa. Nem uma palavra sobre o Tratado Constitucional. Nem uma palavra sobre o modo como tenciona resolver o impasse criado sobre as perspectivas Financeiras. O seu argumento tocou a corda frágil dos liberais e dos “realistas” que se encontram ainda na cultura da Europa dos acordos mínimos: passou o tempo dos blocos económicos regionais, entrámos na era da economia global. “Insisto na reforma económica porque ainda não percebemos que esta é a urgência”, diria já no período de respostas. E o que propôs aos deputados foi uma presidência forte, com “políticas claras e severas” nesta direcção. Em dias de crise, as palavras de Blair tiveram o condão de enfeitiçar o bloco central que conduziu a Europa à crise e não sabe como sair dela.
Vale a pena dissecar brevemente as prioridades de Londres.
No plano orçamental não há novidades. Blair dispõe do cheque britânico contra uma redução substancial na Política Agrícola Comum, o que é, sem dúvida, estimável. Esta polémica não é, contudo, inocente. Ela garante que a União se vai manter em parâmetros de despesa global que não excedam 1 por cento da riqueza criada na Europa. Discutir a distribuição interna da despesa sem mexer no bolo evita o confronto sobre uma das vacas sagradas da União: a sua dependência das contribuições dos Estados, a ausência de fiscalidade europeia e a interdição de emissão de dívida pública. A Europa de Blair, como a de Barroso e Jean-Claude Juncker, quer-se barata.
No interior do debate orçamental, Tony Blair opõe sistematicamente a PAC ao fraco investimento europeu em Investigação. A comparação é chocante, mas o desenvolvimento que Blair articulou no seu discurso é-o ainda mais. Exemplificou com a biometria e linkou este aspecto às políticas de defesa, da luta anti-terrorista e de eficácia no controlo de fronteiras. Por outras palavras, mais do que investigação em abstracto, o que o primeiro-ministro de Sua Majestade propõe a Bruxelas é a sua versão norte-americana. Mas como o sector de defesa e segurança é um dos mais globalizados do planeta, não é difícil ver onde termina a aposta de Blair: na tentativa de criar um complexo militar industrial europeu… dominado pelas “companhias globais” que já hoje vivem à sombra dos orçamentos da guerra infinita ao terrorismo…
A terceira prioridade de Blair, compatível com a Europa barata, chama-se “modernização do modelo social europeu”. Em síntese, e Blair não o ocultou, trata-se de “europeizar” os sucessos britânicos na desregulamentação do trabalho. E de afrontar sem tibiezas as resistências laborais à directiva Bolkestein e ao prolongamento “asiático” dos horários de trabalho. Uma vez mais, é a americanização que entra na agenda. Em face da globalização “realmente existente”, o que Blair propõe é que a Europa jogue abertamente dentro das regras do jogo, em vez de procurar os aliados para a sua mudança. O sucesso da sua intervenção em Bruxelas explica-se também por esta opção ter sido declarada em toda a sua crueza. Barroso e Juncker não estão distantes dela, bem pelo contrário. Mas tinham medo de afrontar directamente as razões maiores do Não francês e que, suspeitam, calam fundo nas ansiedades e receios dos cidadãos de toda a Europa. Blair propõe a “severidade” da guerra social em nome da competitividade. E os socialistas, depois de, há muito, terem perdido a sua espinha dorsal, já se começaram a render à nova cruzada.
O esvaziamento do centro
A primeira vítima desta tentativa de clarificação foi Durão Barroso. Entre Jean-Claude Juncker e Tony Blair, o presidente da Comissão desapareceu. Falou muito, mas nem uma palavra ficará para a história desta crise. No primeiro dia ainda enviou algumas indirectas a Londres. No segundo dia, pateticamente, apenas insistiu no fecho das Perspectivas Financeiras, mesmo admitindo a sua revisão a meio caminho. Enquanto Blair falava de política, Barroso continuava a bater-se pela mercearia. E acabou por ouvir o que não desejava: revisões de percurso, só com balizas “cristalinas”. No limite, Blair convive bem com uma Europa sem Tratado e mesmo sem Perspectivas Financeiras.
A segunda vítima é o Partido Socialista Europeu. A intervenção do seu líder de bancada, Martin Shultz, reflectiu a divisão que atravessa a sua bancada. Os socialistas europeus são o segundo pilar da ordem que agora entrou em crise. Boa parte do grupo é genuinamente “terceira via”; outra não o é, mas encontra-se cultural e politicamente rendida à “Europa dos possíveis”. E só uma minoria rema contra a maré, procurando territórios onde ainda é possível encontrar plataformas para políticas sectoriais de esquerda. O aplauso a Blair não augura nada de bom.
Também Martin Shultz acabou por ouvir de Blair o que não desejava. Apresentou-o como “um partidário da Constituição” e recebeu em resposta um óbvio não: “se acertarmos na política, virá a Constituição”. O modo como se lida com o Tratado é uma pedra de toque do actual conflito no interior da Europa dos governos. Blair subscreveu o Tratado quando a Europa ainda era o que já não é. E pode fazê-lo porque o Tratado se fez dentro das balizas que ele mesmo impôs como limite. Mas depois dos primeiros insucessos nas urnas e seguro de uma redonda derrota no seu próprio país, Blair arrepiou caminho. O Tratado deixou de fazer parte da sua solução para se transformar num escolho para toda a gente. Para toda a gente? Não. Um resíduo de socialistas e verdes não perceberam ainda que o 29 de Maio francês criou a obrigatoriedade de uma clarificação. Ninguém corporiza melhor do que Barroso e Shultz o fim de uma era. Ao menos Jean-Claude Juncker, assumindo claramente a derrota, teve a dignidade dos perdedores.
Acelerar o tempo da alternativa
Sexta e sábado, encontram-se em Paris os colectivos unitários do “Não de esquerda” com 80 convidados de 30 países da Europa, em representação de movimentos e partidos de esquerda.
Em cima da mesa está a urgência de uma resposta popular à crise. Pela primeira vez em muitos anos, ela tem sérias hipóteses de adquirir dimensão europeia. O que nasceu em França foi o europeísmo popular de esquerda. E a contracção de responsabilidades que hoje está obrigado a assumir, é função da extraordinária vitória que alcançou nas urnas.
É também uma urgência em função das primeiras recomposições que se estão a processar no jogo de forças interno às instituições europeias. O princípio da clarificação nos centros de poder é ainda tímido e não está isento de bloqueamentos. Blair ganhou o prólogo, mas os próximos seis meses apenas aprofundarão a crise na Europa. A sua própria plataforma é um programa para a crise. Mas é também esta a circunstância que obriga à iniciativa e exige uma esquerda que se posicione para lá da resistência.
O conclave de Paris tem de encontrar o caminho para a acção de massas na base de uma resposta social e política de alternativa. Não basta uma plataforma de resposta social e se for este o ponto de encontro, ele será insuficiente.
A crise tem dois caminhos de saída: ou o recuo da Europa para um mero espaço de mercado livre; ou a perspectiva de uma refundação democrática e social da União.
Blair repetiu, por mais de uma vez, que não quer apenas um mercado. Mas na realidade, economia, mercado e política são, para ele, sinónimos. Do mesmo modo, não é possível à esquerda sustentar uma Europa social sem uma dimensão politica indiscutivelmente democrática que a assegure. Chegou o tempo das esquerdas sociais e políticas europeias colocarem na agenda a superação de antigas diferenças alicerçadas sobre as fronteiras nacionais e responderem a Blair com o único desafio que a sua política merece: uma Europa social e política contra a sua Europa liberal de governos.