Para cá e para lá da concertina
2005/10/05A pobreza só atrapalha
2005/10/19A face da “divina inspiração”
Diário de Notícias, Opinião
Iraque I: já se sabe o que decidiu a guerra no Iraque. Não foram as armas que não existiam nem os químicos que nunca se encontraram. Também não foram os tormentos de um povo às mãos de um ditador. Nem mesmo os interesses petrolíferos das companhias norte-americanas ou as expectativas de negócio com armamento, segurança e reconstrução das firmas patrocinadas pela Casa Branca. Confidentes de G.W.Bush revelaram que a decisão do imperador, afinal, foi tomada por “inspiração divina”. Pelo menos foi isso que este lhes garantiu… Sabem que mais? Acredito piamente que o criminoso esteja convencido disso mesmo. Até os piores canalhas precisam de justificações para os actos que praticam. Só é péssimo que dirijam o planeta em vez de frequentarem o psiquiatra.
Iraque II: com inspiração ou sem ela, a administração norte-americana tem uma política armada para o Médio Oriente. A sua estratégia confunde-se com os meios que emprega. Mas a ocupação multiplicou por cem todos os conflitos que já antes atravessavam a sociedade iraquiana. A recente tentativa das lideranças xiita e curda alterarem as regras do referendo sobre o texto constitucional que federaliza o Iraque, foi travada in extremis pelo ocupante. Mas de nada adianta este sobressalto de bom senso momentâneo. Porque Washington tinha dado o seu aval ao projecto imposto pelos seus aliados no terreno. Agora, passou-lhes um atestado de menoridade que não esquecerão tão cedo. E não contente, Washington desencadeia entretanto as maiores operações militares desde Falluja nos territórios sunitas que se dispunham a ir a votos. Na Mesopotâmia, a política armada tem o condão de irritar todos ao mesmo tempo.
Iraque III: Tony Blair encontrou-se entretanto com o presidente Jalal Talabani e deitou mais achas para a fogueira. Segundo o primeiro-ministro britânico, “há novos engenhos explosivos a serem usados (pelos terroristas) que nos conduzem quer a elementos iranianos, quer ao Hezzbolah, apoiado pelo Irão”.
A diplomacia britânica que tem séculos de experiência no Médio Oriente, ou se “passou” ou foi despedida pelo mais perigoso e irresponsável dos dirigentes europeus. Ao chamar a carta iraniana para o baralho, Londres abre uma nova frente de conflito, agora com a maioria xiita. Enquanto o desafio ao Irão se cingia ao seu programa nuclear, as diversas pedras do mosaico ainda se encontravam no lugar. Com este passo, que deixou o presidente curdo manifestamente incomodado, Blair ensaiou a fuga em frente. Começaram os preparativos para nova “inspiração divina”.
Teerão I: a hierarquia reaccionária xiita encontra-se ante um dilema similar ao da União Soviética nos primeiros anos da revolução: consolidar “o xiismo num só país” ou estender “a revolução islâmica”. A vitória de Estaline sobre a velha guarda bolchevique, representou a vitória da primeira escolha. Já Teerão tem oscilado. Mas deixará de o fazer se lhe retirarem a possibilidade de escolha.
De momento, Teerão joga um braço de ferro em torno do seu programa nuclear. À luz dos tratados existentes, julga-se, e com razão, no direito de o desenvolver “para meios pacíficos”. Pelo seu lado, a União Europeia sabe, com igual razão, que esta via é, a prazo, a certeza de mais um país com armamento nuclear. A equação tem saída, mas Londres e Washington não a desejam: trocar o fim do programa nuclear iraniano pelo relançamento dos acordos internacionais de desarmamento nuclear.
Neste contexto, a questão nuclear passou a ser um emblema de soberania. Se a Europa e os EUA esticarem a corda e, simultaneamente, apertarem a tarraxa sobre a maioria xiita no Iraque e no Líbano, a “revolução islâmica” ganhará cores nacionais nos três países e fará dos terroristas da Al Qaeda, e até da insurgência no “triângulo sunita”, meras notas de rodapé na convulsão que se avizinha. G.W. Bush e Tony Blair têm que responder a uma pergunta muito simples: estão preparados para uma nova guerra? Na realidade, não estão. Mas que desencadeiam as ondas de choque que a tornam inevitável, isso parece evidente.