A face da “divina inspiração”
2005/10/08Nova direita e nova esquerda
2005/10/28A pobreza só atrapalha
Diário de Notícias, Opinião
18 países, com 460 milhões de habitantes, pioraram o nível de vida desde 1990. Retrocederam. Esta uma das constatações a que chega o último relatório das Nações Unidas sobre o estado das nações. Ela diz-nos que o progresso não é avenida que todos frequentem.
O relatório contem outros números de arrepiar. Dois biliões e meio de seres humanos vivem com menos de 2 dólares por dia. E quase metade destes, mais de um bilião, não atingem sequer o dólar diário. Os especialistas chamam a isto “pobreza extrema”.
“O mundo tem o conhecimento, os recursos e a tecnologia para acabar com a pobreza extrema”, garante Kemal Dervis, administrador do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas. Quando as 500 pessoas mais ricas do planeta somam mais rendimentos do que os 416 milhões mais pobres, isso é uma evidência. Qualquer criança faria a pergunta que muitos adultos esqueceram: e não se podia distribuir melhor?
Podia, mas os líderes não querem ir por aí.
As Nações Unidas aprovaram, há anos, o objectivo de reduzir para metade, até 2015, a pobreza extrema existente em 1990. Coisa modesta. Nesse ano ainda distante, meio bilião de pessoas continuaria a sobreviver com menos de 1 dólar por dia. E modesta porque a meta se pode alcançar desde que os países ricos, durante alguns anos, destinem 0,5 por cento do seu rendimento nacional bruto a esse objectivo.
Sucede que as coisas estão a piorar.
Três quartos da humanidade em pobreza extrema vive ainda no campo. “A lógica recomendaria que se investisse prioritariamente na agricultura familiar e nas infrasestruturas rurais”, afirma Jacques Diouf, director geral da ONU para a alimentação (FAO). Mas não. “Nos últimos 20 anos, a ajuda ao desenvolvimento rural dos países mais pobres passou de 5,14 a 2,22 mil milhões de dólares anuais”.
As ajudas dos Estados doadores ao desenvolvimento dos países pobres está a diminuir. Em 2003, arrastava-se, penosamente, por 0,25 por cento dos respectivos PIB’s. Menos do que há uma década. E menos de metade do compromisso que subscreveram para que os Objectivos de Desenvolvimento para o Milénio pudessem ser atingidos até 2015.
Os sete países mais poderosos aplicam apenas 0,07 por cento dos seus PIB’s no combate à pobreza extrema! E 60 por cento desta ajuda nem sequer chega aos destinatários. Consome-se em burocracia, empresas e agências, transportes, compra de facilidades, e pagamentos de projectos e especialistas.
A explicação dos líderes mundiais é a de tudo se resolverá com o mercado e o crescimento que ele induz. É mentira e eles sabem. Esta “fezada” que os factos desmentem, é uma cortina tecnocrática para o princípio que rege a política planetária – quem puder que se safe.
A obstrução norte-americana às ajudas ao desenvolvimento e a tragédia de Nova Orleães, são fragmentos do mesmo filme. Não havia planos de evacuação porque quem tem carro safa-se e quem não tem, lixa-se.
Os fundos para a protecção civil foram indexados às tarefas de defesa e sucessivos avisos sobre a urgência de reforço dos diques caíram em saco roto. Porque as políticas públicas não militares são a “gordura” de que os Estados se devem livrar.
O que mais impressiona, contudo, são os atrasos na primeira resposta. Em Washington ou Nova Iorque isso não teria ocorrido. Mas Nova Orleães tinha uma cotação proporcional aos pobres e pretos que albergava. A Guarda Nacional da Louisiana, por exemplo, atrasou-se 3 dias. Teve de aguardar pela autorização formal do Presidente. E precisava de 1400 homens para arrancar em segurança, o que demorou a reunir porque 3.800 andam pelo Iraque…
O Império é um tigre de papel. Tão voraz nos negócios e na guerra, quanto incompetente para acudir às vítimas de um furacão anunciado nas traseiras do seu quintal.
Uma maldita honestidade cínica inunda o palácio do imperador. Washington não quer saber dos pobres dos outros, porque nem dos seus trata. Os pobres são uma perda de tempo e de dinheiro. Um investimento sem retorno. Uma insuportável chatice que nem sequer vai a votos.
Exagero? De visita ao Astrodome de Houston, que alberga por estes dias milhares de desgraçados de Nova Orleães, a mãe do imperador, Barbara Bush, proferiu um edificante comentário: “uma grande parte desta gente era de qualquer maneira deserdada. Assim, isto até lhes veio a calhar”. Mais palavras para quê?