Fallujah
2004/11/18Finalmente!
2004/12/02Por terra ocupada
REPORTAGEM publicada no GLOBAL
No dia em que Arafat fazia a sua última viagem, da Muqata para o hospital em Paris, uma delegação de 14 eurodeputados chegava à Terra Santa para uma visita não oficial à Palestina e a Israel.
Naquela segunda feira conseguimos autorização para entrar na Faixa de Gaza. No mesmo dia, um miúdo de 16 anos, militante da FPLP, fazia-se explodir em Telaviv, somando novas quatro vítimas civis às cerca de mil que, do lado israelita, as estatísticas registam desde 2000.
Se o miúdo fosse de Gaza, o nosso dia teria sido diferente. Com alta probabilidade teríamos visto chegar os helicópteros apache, de controlo remoto, descendo sobre a casa da família do jovem, destruindo-a. A família pagando pelo filho. Ou teríamos sido informados que os tanques de guerra e os buldozzers estavam a chegar de novo às margens do campo de refugiados de Jabalya. Vimos os efeitos da anterior expedição de retaliação e punição, no início de Outubro: quarteirões arrasados a bulldozer, 55 famílias desalojadas num deles, 160 mortos entre combatentes e civis. Por causa das expedições punitivas, desde o inicio da chamada “segunda intifada”, três mil e seiscentos palestinianos perderam as suas vidas. Mais de 80% eram civis. Numa população que não chega a quatro milhões, é bárbaro. Imaginem 292 mil norte-americanos mortos no Iraque, em quatro anos, e têm-se uma ideia…
Eis, cruamente, como as coisas se apresentam: a Terra Santa está em guerra. Essa guerra, de um e de outro lado, é feita por miúdos. Uns, ultra-equipados, pertencem a um dos mais bem preparados exércitos do mundo; os outros, porque não têm helicópteros apache, nem caças F16, nem tanques, usam rockets e o que têm à mão – frequentemente os seus próprios corpos. Nesta guerra calada, assimétrica e fatal, as primeiras vítimas são os civis dos dois lados. Mas, acima de tudo, o que se esvai é a esperança. É a sua ausência que alimenta a dança macabra das bombas suicidas e das punições colectivas. É a sua morte que faz a maioria dos israelitas apoiar o novo muro da vergonha, e a maioria dos palestinianos reconhecer como mártires os seus filhos.
A asfixia de um povo
Percebe-se o medo em Telaviv, porque é imponderável a bomba humana num restaurante, num mercado ou numa espera de autocarro. Como se sente, ó se sente, o sofrimento colectivo de uma nação que vive prisioneira na sua própria terra. Medo e revolta, eis os condimentos do sangue derramado, os obstáculos maiores para uma solução política. Mas, porque há um ocupante e um ocupado, só um hipócrita ou um tonto pode, ante os factos mais recentes, imitar Pilatos.
Comecemos pelo muro.
Ariel Sharom justifica-o em nome da segurança de Israel e, de facto, o número das bombas suicidas caiu em flecha. Sucede que andámos a visitá-lo e “aquilo” nada tem a ver com uma muralha chinesa instalada nas fronteiras da última guerra, a de 67. Os 255 Km de betão e arame electrificado com duplas vias internas de controlo militar – falta erguer outro tanto… – entram pelos territórios que Israel atribuiu à Autoridade Palestiniana. Nalguns casos, essas incisões penetram 30 e 40 Km na “terra do outro”. Noutros casos, como em AbuDis, dividem a cidade a meio. AbuDis está para Jerusalém como a Amadora para Lisboa. Dali vê-se a abóbada doirada da mesquita de Al Aqsa. Imagine agora que a sua viatura segue pela rua principal desta periferia e que, de repente, um muro a interrompe. Não se perde só a vista. De repente, na direcção de Jerusalém, você deixa de ter acesso aos serviços, às escolas e serviços de saúde que ficavam do “outro lado”. E as visitas aos familiares passam a ser drasticamente limitadas. Se fosse uma pura questão de “maldade” compreendia-se melhor. Mas não. O Muro foi colocado naquele preciso lugar para defender um pedaço de terra que Israel quer para um futuro colonato. Assim se cercam as cercanias da cidade santa.
Em Qalqylia, mais a Norte, o Muro conta outra história. Ele mura a cidade em volta, como na Idade Média. Mas as muralhas medievais eram feitas pelos moradores. A de Qalqylia, pelo contrário, foi erguida contra eles. O que ali sobrevive é uma cidadeprisão de 80 mil criaturas, de onde se sai ou entra ao ritmo marcado pelos carcereiros.
Qalqylia é como Gaza. Uma prisão que os carcereiros deixam entregue aos prisioneiros. Um deles é produtor de flores. Raid Hourani, 40 anos, tem a sua estufa junto ao Muro. Está “nas mãos de Deus”, ou seja, vende ao preço que lhe oferecem. A cobertura da estufa parece um queijo gruyeree os soldados revistam-no e decidem quando pode trabalhar. A terra que usa fica para lá do Muro e os soldados cobram sempre que a carrega. Uma encomenda para a feira de Nablus, a umas dezenas de quilómetros, pode demorar dois dias a chegar. Morta, porque a vida ao ritmo dos checkpoints não é compatível com o tempo das flores. Nem com o dos homens.
Contra todas as declarações oficiais, a evidência mostra que o Muro não foi erguido para separar israelitas de palestinianos, mas para impedir a circulação destes na sua terra. Aliás, ele não se compreende sem os restantes 703 obstáculos que a ONU identificou na Cisjordânia. Também eles se destinam a evitar o contacto entre palestinianos.
Seguir viagem pelas estradas da Cisjordânia é chocante. As cidades e vilas palestinianas distinguem-se, à vista desarmada. Descem pelas colinas, têm minaretes e o seu perfil é anárquico. Os colonatos, nos montes ao lado, ocupam os topos, são rigorosamente ortogonais e as suas moradias, todas iguais, têm, não raro, painéis solares, árvores, jardins e piscina privativa. Muitas envergonham as do Restelo, mas não é isso que mais impressiona. O que choca são os acessos da vila palestiniana à via rápida. Invariavelmente cortados. Ou lhes abriram uma cratera à bomba ou os bloqueam com gigantescos cubos de cimento.
Aos bloqueios adicionem-se 60 checkpoints. Não são fronteiras, mas barreiras internas destinadas a infernalizar a vida das pessoas. Miúdos e miúdas de farda revistam e revistam erevistam. Tudo funciona ao ritmo de apresentação de cadernetas de diferentes cores, que definem origens e horários de circulação. A democracia de Israel nos territórios ocupados é como a que conhecemos noutras paragens: bantustização e apartheid.
A grande depressão
Há cinco anos, 130 mil palestinianos faziam diariamente o seu vai-vem entre a Cisjordânia e Israel. Para trabalharem. Esta fonte de rendimento representava, em 1999, 18 por cento do PIB da Palestina. Mas em 2003, o seu número tinha descido para 40 mil e hoje deverão ser metade disso. 47 por cento dos palestinianos vive com menos de dois dólares por dia e quase metade da população activa está no desemprego. Os primeiros a sofrer com a bantustização foram os mais pobres. Mas a política actual de Israel tem por alvo principal as classes médias e instruídas da sociedade palestiniana. Depois dos acordos de Oslo, os territórios apresentaram taxas de crescimento anuais entre os 6 e os 15 por cento. Mas de 1999 para cá, o PIB caiu 40 por cento e o rendimento anual per capita passou de 1483 para 925 dólares. Entre a grande depressão e o fim da liberdade de movimentos, a mensagem para as classes médias é clara: imigrem, que a vossa vida, aqui, só pode ser um inferno.
Não deliro. Grosso modo, tem sido esta a política de Israel em Jerusalém onde, rua a rua, as fronteiras do lado judaico vão avançando. Nas costas do Hotel Embaixador, que já se situou no lado oriental, mais uma rua foi conquistada por colonos de patilha enrolada. Eles hasteiam no cimo das suas moradias o que aos palestinianos é interdito: a bandeira. Exibem-na com orgulho e arrogância, como se aquilo fosse “terra prometida”.
O peso da História
Os colonatos são uma invenção trabalhista. Quem mais os incentivou, depois dos acordos de Oslo, foi Barak. Crescem como cogumelos. 200 mil colonos nos territórios ocupados são 200 mil novos problemas para qualquer agenda de Paz. Os novos ocupantes não são palestinianos de religião judaica, descendentes de famílias que toda a vida tivessem vivido na Terra Santa. São imigrantes de data recente, em particular russos que chegaram a Israel depois da queda do outro Muro. Para qualquer palestiniano, são ladrões de terra que, ainda por cima, gozam de isenção de impostos e têm água garantida todos os dias. Cowboys em terra de índios, portanto. É em seu nome que Israel faz o que acabei de descrever. E é em nome da sua sobrevivência que Ariel Sharom se dispõe a deixar cair os oito mil colonos que ainda tem na Faixa de Gaza. Ali, eles não terão água por muito tempo, nem condições de sobrevivência, rodeados por um milhão e 300 mil palestinianos. Sharom retira para salvar 200 mil e outros que venham no futuro para a Cisjordânia.
Que Paz é possível nestas circunstâncias? Que Paz, quando em Washington teremos G.W.Bush por mais quatro anos? Sinceramente não sei. Apenas sei que não se pode desistir de tentar. A História é madrasta, está a mover-se na direcção errada. Cada dia sem acordo torna mais difícil qualquer outro, no futuro. Mas, ao mesmo tempo, não serve qualquer acordo. Em Telaviv e em Ramallah, falámos com os autores dos acordos civis de Genebra, de 2003. A iniciativa só pode saudar-se. Num momento em que Ariel Sharom dizia não existir interlocutor na Palestina, esses homens e mulheres provaram que havia. E fizeram-no de um modo que a comunidade internacional nunca tentara – procurando chegar a uma solução estável que proporcione segurança e horizonte aos dois povos. Oslo e o chamado “road map” são acordos de processo, de caminho. Morrem antes de se afirmarem. Genebra, pelo contrário, procura selar um destino e esse o seu mérito. Mas, ao mesmo tempo, mostra como é difícil chegar a uma Paz aceitável – e, por isso, mesmo exequível.
Também em Ramallah, falámos com Marwan Barghoutti, que lançou recentemente a Iniciativa Nacional Palestiniana, uma “terceira via” entre o Hamas e a Fatah. Durante anos, coordenou uma rede não governamental de cuidados de saúde, a única que no terreno procurava responder à rede de serviços sociais religiosos que os fundamentalistas criaram e que a Autoridade Palestiniana não conseguiu implantar. M. Barghoutti “corre por fora” e critica a militarização da segunda intifada. Ele subscreveria o que nos disse Yussi Beilin, homem de Genebra e líder de um pequeno partido de esquerda no Knesset: “na violência, o Hamas será sempre o mais forte”. Há dois anos, os voluntários e voluntárias de M. Barghoutti marcharam pacificamente sobre os checkpoints. A sua estratégia é a da desobediência civil à ocupação. Mas não assinou os conteúdos de Genebra. Na linha dos argumentos de Eduard Said, uma Paz de pragmáticos não o convence. Do mesmo modo, ouvimos em Gaza vários palestinianos de ONG’s valorizarem Genebra, acrescentando ser necessário um formal pedido de desculpas. Numa terra onde a memória é mais actual que os telejornais, não se pode fazer tábua rasa da História…
COURAGE TO REFUSE
EM TELAVIV, na cave de uma pequena moradia, temos encontro com dois militares: o primeiro, engenheiro de software, foi paraquedista; o segundo é ainda comando, com a patente de capitão.
David, 31 anos e 12 de exército, com acções especiais no Líbano e nos territórios ocupados, esteve “envolvido em acções indignas”. Há três anos, recusou obedecer a uma ordem em Gaza, acompanhado pelo seu pelotão. São dois dos 630 militares que nos últimos anos se recusaram publicamente a cumprir serviços nos territórios ocupados. O seu símbolo é a estrela de David. Diferentemente de outros refujniks, courage to refuse, é uma organização patriótica, sionista. “Dirigimo-nos ao mainstream israelita, explicando-lhes que a nossa segurança depende da retirada dos territórios ocupados e de se fazer a paz com os palestinianos”, sintetiza o primeiro; “Se tivermos três a cinco mil refusers, o nosso primeiro ministro passará a ter que ser mesmo muito criativo”, ironiza o segundo. Por causa desta coragem, passam algum tempo nas cadeias, apanham com um processo em cima, vêem as suas promoções retardadas, mas continuam no activo. Porquê? “Se fossemos expulsos, metade do exército seguir-nos-ia”…
Eles actuam nas guarnições, nas universidades, nos kibutzes e em manifestações nos checkpoints. Vão transformar-se num movimento aberto a civis e generalizar a desobediência: “sem exército nos territórios, não há como prosseguir a guerra”, garantem.