A cidade do menino
2005/12/24Democracia sem Estado
2006/02/01Vinte anos depois
Diário de Notícias, Opinião
1. Completam-se amanhã 20 anos sobre a adesão de Portugal à CEE. Pouco importa agora que, nos idos de 70, esta escolha tenha sido feita, entre outras razões, para enterrar definitivamente as veleidades revolucionárias de um país alterado. A verdade é que as elites nacionais, por uma vez, acertaram. Finalmente sem Império, era e é na Europa que o país se deve reencontrar.
2. A adesão foi popular porque sintonizou o país com o seu desejo de modernidade. Mas o fosso entre expectativas e realidades cresce a cada dia que passa.
A Europa representou para a iniciativa privada a abertura de mercados. Mas para os trabalhadores, a promessa de salários europeus e a garantia de uma vida digna na terceira idade, continua por cumprir.
A Europa renovou as aspirações de mobilidade e maior abertura nos costumes. Mas se o aumento da oferta cultural e dos bens de consumo é uma evidência, Portugal continua a ser um dos quatro países onde o aborto ainda constitui crime na Europa. E a mobilidade das pessoas é bem mais penosa do que a de bens e capitais.
A Europa despertou nos mais pobres esperanças sem fim. Mas o balanço dos fracos entre os fracos só pode ser severo. E o aumento consistente do desemprego, desde 2000, apenas agrava este juízo.
O saldo destes 20 anos é que as obras nas redes de infraestruturas e o crescimento da sociedade de consumo, não tiveram equivalente na melhoria das condições de vida devidas a grande parte da população. As transformações decorrentes da adesão foram mais superficiais do que profundas. Betão e alcatrão mudaram a paisagem. Mas não erradicaram os verdadeiros atrasos do país.
3. O ponto onde nos encontramos avalia o modo como as elites e os governos conduziram, com assinalável continuidade, a nossa integração. Umas e outros aplicaram os fundos comunitários, como o ouro do Brasil foi esbanjado em novo riquismo.
Os fundos não travaram a fuga dos campos em direcção às cidades e ao litoral. Não renovaram o tecido industrial do país, nem salvaram as suas pescas. Não transformaram a educação e não fizeram da formação ao longo da vida uma alavanca para enfrentar com qualificações o Mercado Único e a globalização.
Pior ainda, os fundos comunitários transformaram-se no principal critério para as decisões de investimento público: se há dinheiro da Europa, faz-se; se não há, adia-se.
Fez-se muito. Só não se fez o que era mais decisivo para o futuro.
4. É indispensável responsabilizar quem decidiu. Quem deu prioridade às redes de auto-estradas e não à renovação e modernização do transporte ferroviário; quem investiu no tratamento de lixos, mas foi incapaz de promover a energia solar num país de poucas nuvens; quem plantou centros culturais pelo país, mas não encontra meios para os fazer funcionar; quem renovou centros históricos, mas continuou a fazer bairros sociais nas periferias da infelicidade alheia; quem investe em rotundas e circulares, mas é incapaz de criar centros de acolhimento para imigrantes e sem abrigo, ou serviços de assistência domiciliária à solidão dos idosos.
Nada disto responsabiliza uma Europa de costas largas. Neste balanço, o que está em causa é uma modernização conservadora, consumista e novo-rica, que fez da Europa e dos seus fundos uma ilusão colectiva destinada a não durar.
Os governos de Cavaco Silva, António Guterres e Durão Barroso encheram o olho, a construção civil e o sistema financeiro. Os autarcas renovaram mandatos. Mas todos adiaram o país.
5. Também a Europa se encontra em causa neste balanço. Os caminhos da União são cada vez mais sinuosos, minimais e interesseiros. O progresso técnico e científico, e o progresso social, mesmo que a distintas velocidades, deixaram de seguir na mesma direcção. O controlo dos preços e o Pacto de Estabilidade colocaram em causa o emprego e as aquisições sociais. Quem andou durante anos a sustentar que “melhor Estado” era “menos Estado”, apanha agora com a doutrina oficial de hoje: “melhor Europa, menos Europa”… Mas nem deste caminho se podem isentar os nossos governos. De Soares a Cavaco e de Guterres a Santana Lopes ou Sócrates, alegremente adoptaram a cartilha do “bom aluno”, fórmula mágica que trocava a nossa aquiescência a tudo o que se decidisse, contra o canto dos dinheiros. Portugal jogou pequenino com as regras que os grandes ditaram. A nossa crise também é tributária deste europeísmo patrioteiro de mercearia, tão bem comportado quanto palavroso e vazio.